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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A “doutrina da pacificação”

O maior desafio da valorização capitalista das favelas por meio da ocupação territorial permanente da polícia não é, portanto, a ameaça de uma contraofensiva dos narcotraficantes desterritorializados, mas fazer com que os seus residentes aceitem os termos da nova situação imposta, “pacificá-los”.

Por Eduardo Tomazine Teixeira

A jornalista e escritora Naomi Klein publicou, em 2007, o best-seller crítico A doutrina do choque: A ascensão do capitalismo de desastre, no qual escrutina e denuncia a forma como Estados e corporações capitalistas se valem de desastres naturais, guerras e outras situações de choque para implementar políticas liberais, como, por exemplo, a privatização da educação pública de Nova Orleans após a passagem do furacão Katrina, ou as políticas neoliberais do Chile, viabilizadas pela derrubada do presidente democraticamente eleito, Salvador Allende, em 1973. A autora conclui que a doutrina do choque seria a fase superior daquilo que Schumpeter chamara de “destruição criativa” do capital. Em O novo imperialismo, David Harvey propõe, por sua vez, que uma das bases fundamentais da acumulação capitalista seria a espoliação (“acumulação por espoliação”), operada através da privatização dos recursos naturais, da formação de um proletariado sem-terra (e, pode-se acrescentar, de um proletariado urbano sem-teto), do combate a formas alternativas de produção e consumo, levadas a cabo, na maioria das vezes, mediante o “choque” ao qual se refere Naomi Klein. Desta maneira, a acumulação primitiva de capital não se restringiria ao período histórico de formação do modo de produção capitalista, sendo, antes, uma característica presente em toda a sua evolução e necessária para a sua reprodução.

Por mais criativas que sejam as modalidades de acumulação do capital que associem o choque e a espoliação, os seus efeitos destrutivos são geradores, indiscutivelmente, de uma instabilidade sistêmica a qual precisa ser regulada incessantemente pelos gestores capitalistas (inclua-se aqui o aparelho de Estado), sob pena de verem solapado aquele que é o principal motor da acumulação: a extração de mais-valia e a sua realização por meio do consumo de mercadorias. A dialética do choque e da espoliação se complementam, portanto, com engenharias de controle social em que coerção e consentimento estão muito mais próximos do que em momentos e locais nos quais a acumulação capitalista se dá apenas (ou majoritariamente) pela exploração, e nas quais o controle social é operado, em geral, por um consentimento ideologicamente produzido.

No presente artigo, proponho que está em vias de se estruturar no Rio de Janeiro um poderoso mecanismo de controle social de coerção-consentimento, e que um mecanismo nestes moldes é uma condição para o amadurecimento das relações capitalistas nesta metrópole. Trata-se do Programa de Pacificação de Favelas, encarnado pelas Unidades de Polícia Pacificadora (as UPPs), um mecanismo de controle social que vem acrescentar à violência e à espoliação históricas existentes nas favelas novas formas de controle e consentimento inseparáveis delas, fornecendo, assim, as condições para o avanço do capitalismo na metrópole fluminense. Chamo a esta modalidade carioca de controle social de “doutrina da pacificação”, a qual consiste em aplicar alguns dos fundamentos do peacekeeping das Nações Unidas e da nova doutrina de contrainsurgência dos EUA ao ambiente de uma metrópole sob uma “democracia” representativa e desprovida de uma verdadeira guerra, seja ela convencional ou civil.

As implicações econômicas da “pacificação” de favelas

Em um artigo anteriormente publicado neste Passa Palavra (aqui e aqui), destaquei algumas das motivações econômicas da implementação das UPPs em algumas favelas cariocas. Mostrei como as próprias autoridades responsáveis pela política de segurança pública no estado do Rio de Janeiro declaram abertamente, em diversos momentos, alguns dos objetivos das tais Unidades de Pacificação, como a criação de um “cinturão de segurança” para formar um “corredor turístico” na Zona Sul e no Centro da cidade, a viabilização do projeto de “revitalização” da Zona Portuária (o projeto Porto Maravilha), a valorização imobiliária do entorno das favelas “pacificadas” e a regularização de serviços privados nestes espaços, os quais eram, antes, consumidos de maneira clandestina. Argumentei também que o desenvolvimento de um mecanismo de ocupação permanente das favelas nos moldes das UPPs, o qual contrasta sensivelmente com as anteriores incursões violentas e corruptas do braço repressor do aparelho do Estado, respondem a uma exigência da nova dinâmica global da acumulação capitalista, o qual tem encontrado nas altas taxas de crescimento econômico dos países da semiperiferia uma tábua de salvação.

Disse que o estado do Rio de Janeiro, impulsionado pela atividade petrolífera e seu complexo industrial (público e privado) e pelos grandes investimentos do Governo Federal, e que a sua capital, com seu potencial turístico e com a perspectiva de realizar megaeventos internacionais, desempenham um papel importante na retomada do crescimento econômico nacional e no costuramento de uma aliança política capaz de promovê-lo e de capitalizar politicamente em função dele. Está a reverter-se, pois, um quadro de estagnação econômica e cacofonia política que afetou profundamente o estado e a cidade do Rio de Janeiro ao longo das décadas de 80 e 90, momento em que frações mais predatórias do capitalismo prosperaram, submetendo a produção espacial da capital fluminense à sua lógica: o tráfico de armas e de drogas e a “indústria da segurança e do medo”, com a proliferação de condomínios exclusivos, seguranças privados, sistemas de câmeras, carros blindados, etc.

Como a economia é amiga dos números, trago aqui alguns dados que nos ajudam a dimensionar o fluxo de capitais que dinamizam a economia fluminense atualmente.

Segundo um estudo realizado pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN), intitulado Decisão Rio 2010-2012, são previstos 123 bilhões [milhares de milhões] de reais em investimentos no estado até 2012, dos quais 74,9% serão provenientes do setor petroquímico [1]. Ainda segundo o estudo da FIRJAN, estes investimentos gerariam 360 mil novos empregos no estado e seriam responsáveis por aumentar a participação do Rio de Janeiro na composição do PIB brasileiro dos atuais 13% para 20%. Para a organização da Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 na cidade do Rio de Janeiro, prevêem-se investimentos de quase 30 bilhões de reais [2], destinados à reforma e ampliação dos aeroportos, à criação de duas novas linhas do metrô e de corredores expressos de ônibus, à construção de equipamentos esportivos e residenciais para os jogos, além da despoluição de lagoas e da Baía da Guanabara. Estima-se que a capacidade hoteleira da cidade passará dos atuais 24 mil quartos para aproximadamente 50 mil, valorizando a indústria hoteleira no Rio de Janeiro entre 15% e 20% apenas durante a realização das Olimpíadas.

Em um evento recentemente realizado com centenas de empresários e personalidades da mídia, no Harvard Club de Nova Iorque, o Governador Sérgio Cabral empenhou-se em vender a importância econômica das UPPs, declarando que “esse combate à criminalidade não é apenas essencial para a manutenção da ordem e para a melhoria da qualidade de vida da população do estado, mas também um fator decisivo para o desenvolvimento econômico do Rio de Janeiro” [3]. No entanto, empresários “de visão” não precisaram aguardar a propaganda do governador para se aperceberem do enorme potencial econômico aberto pelas UPPs. A multinacional Procter & Gamble já instalou uma unidade produtiva na favela da Cidade de Deus, a qual recebeu uma UPP há dois anos, sendo estimulada, para tanto, com reduções de IPTU [Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, imposto municipal que incide sobre propriedades imobiliárias] e de ISS [Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, imposto municipal que incide sobre a prestação de serviços definidos por lei]. A Philips, por sua vez, consultou a Secretaria de Segurança do estado para saber se consta em seus planos instalar uma UPP no morro do Dendê, na Ilha do Governador, pois a referida empresa diz ter interesse em estabelecer uma fábrica por ali [4]. Pela escolha das duas multinacionais mencionadas, pressupõe-se que a vizinhança com favelas “pacificadas” parece oferecer uma significativa vantagem estratégica nas decisões locacionais do setor industrial, fornecendo terrenos a baixo preço em áreas centrais de uma metrópole em crescimento econômico e a poucos metros de abundantes bolsões de força de trabalho barata, revertendo uma tendência locacional histórica, em que as indústrias se deslocam para a periferia metropolitana ou mesmo para fora das metrópoles em busca, sobretudo, de terrenos menos valiosos e vantagens fiscais.
Mas a “pacificação” de favelas não vincula-se à valorização capitalista no Rio de Janeiro apenas por criar a tranquilidade necessária aos negócios. As quase mil favelas do município, com cerca de um milhão de moradores, constituem um enorme mercado consumidor pouco explorado, uma zona de sombra para a arrecadação de tributos para o município e uma força de trabalho pouco instruída, gerando um problema para o suprimento da demanda necessária ao crescimento econômico.
Não por acaso, o próprio site oficial do Programa de Pacificação de Favelas declara que, depois da polícia, vem a “invasão de serviços”. Deixam apenas de informar que tal “invasão” tem sido restrita aos serviços pagos, sobretudo a formalização do consumo de energia elétrica, TV a cabo e água. Cientes do grande potencial para a realização de negócios nas favelas “pacificadas”, os gestores capitalistas criaram, por iniciativa da Associação Comercial do Rio de Janeiro, um Conselho Empresarial de Parcerias Pró-Formalidade, conformado por um pool de agências estatais, empresas privadas e ONGs.

Àqueles que se mostrem ainda reticentes quanto ao potencial econômico da “reconquista” das favelas pela autoridade do Estado, vale a pena observar de que maneira a diplomacia americana avalia a questão. Em um telegrama recentemente divulgado pela WikiLeaks, num tópico intitulado Economia da pacificação de favelas, o despachante indica que
Além dos fatores de segurança envolvidos com o programa de pacificação, existem também interesses econômicos significativos em jogo. Alguns economistas previram, no caso de todas as favelas passarem para a autoridade do estado do Rio, um aumento de 90 milhões de reais em novas taxas sobre serviços e propriedade, os quais afluiriam para o governo municipal. O presidente da companhia provedora de energia elétrica no Rio, a Light, estimou que a economia do Rio de Janeiro poderia crescer em cerca de 38 bilhões de reais mediante o crescimento do comércio e dos novos empregos. De acordo com André Urani, um economista do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), a Light perde, pelo menos, 200 milhões de dólares por ano em decorrência [do consumo de] energia clandestina nas favelas. […] Enfatizando o potencial de mercado das favelas, Urani declarou: “Imagine os ganhos em receita se a Light conseguisse transformar os um milhão de consumidores ilegais dos seus serviços em clientes”. [5]

De consumidores clandestinos a clientes: a contrainsurgência camuflada de “pacificação”

Transformar um milhão de consumidores clandestinos em clientes formais, a despeito da simplicidade da formulação, é uma tarefa extremamente delicada, exigindo a ruptura de um “pacto sócio-espacial” que tacitamente vigorava na cidade. Afinal, a produção de um espaço informal como o das favelas, nas proporções com as quais o fenômeno se desenvolveu no Brasil, pressupõe mais do que a incapacidade reguladora do Estado, mas a necessidade da informalidade para a manutenção da nossa formação sócio-espacial. Apenas com este tipo de “compensação”, isto é, a isenção de pagamento de impostos sobre a propriedade territorial (IPTU) ou de taxas para o consumo de serviços básicos como a energia elétrica e a água, além de outros menos básicos, mas centrais para a cultura contemporânea, como a TV a cabo, foi possível manter a reprodução de uma força de trabalho pessimamente remunerada pelo capital ou pelas relações de clientela (domésticas, porteiros, biscateiros, etc.) e pouquíssimo assistida pelo Estado. Somente assim permitiu-se, igualmente, a manutenção da “paz social”, embora tal estado de coisas abrisse inevitavelmente brechas ao desenvolvimento de atividades criminais territorializadas nos espaços segregados, como o comércio varejista [a retalho] de drogas que vimos proliferar.

A formalização das relações capitalistas nas favelas, para além de representar uma reconfiguração jurídica do estatuto daqueles que consomem serviços, pressupõe, pois, uma mudança na dinâmica territorial nestes espaços. Não simplesmente a expulsão de atores sócio-econômicos concorrentes, como os narcotraficantes, mas, principalmente, a aceitação de uma condição assimétrica entre deveres e direitos, traduzida pelo encarecimento do custo de vida na favela e por uma nova disciplina imposta pelo aparato repressor do Estado. Afinal, mesmo as atuais taxas de crescimento econômico do país não são suficientes para assimilar no circuito formal da economia, do dia para a noite (que é a escala temporal da “pacificação”), a massa de trabalhadores das favelas “pacificadas”, no que se acrescenta a incapacidade do Estado, seguindo o modelo econômico atual, de investir o suficiente em tão pouco tempo para remediar o passivo histórico de infraestrutura técnica e social nestes espaços segregados. O maior desafio da valorização capitalista das favelas por meio da ocupação territorial permanente da polícia não é, portanto, a ameaça de uma contraofensiva dos narcotraficantes desterritorializados, mas fazer com que os seus residentes aceitem os termos da nova situação imposta, “pacificá-los”.

Não é mero acaso que a diplomacia estadunidense reconheça as semelhanças entre o Programa de Pacificação de Favelas e a doutrina de contrainsurgência utilizada pelos EUA no Afeganistão e no Iraque, como demonstra o seguinte telegrama revelado pela WikiLeaks:

O Programa de Pacificação de Favelas compartilha algumas das características da doutrina e da estratégia de contrainsurgência dos EUA no Afeganistão e no Iraque. O sucesso do programa dependerá, em última instância, não apenas de uma efetiva e duradoura coordenação entre a polícia e os governos estadual/municipal, mas também da percepção dos moradores das favelas quanto à legitimidade do Estado. […] Outro fator significativo para que o projeto seja bem sucedido é o quão receptivos serão os moradores das favelas para assumirem as suas responsabilidades cívicas, tais como pagar por serviços e taxas legítimas. O lugar-tenente do BOPE, Francisco de Paula, o qual também é residente da favela do Jardim Batam [favela controlada por “milícias” antes da UPP], contou-nos que muitos da sua comunidade resistiam à ideia de terem que passar a pagar taxas mais elevadas por serviços como eletricidade e água, outrora providos por fontes piratas. Carvalho também disse que os seus oficiais encontraram uma confusão generalizada entre os moradores que, até agora, vinham pagando por eletricidade e TV a cabo providas por fontes clandestinas. “É muito difícil para eles ter que pagar, de uma hora para outra, por serviços que antes eles recebiam por menos ou até mesmo de graça”, disse ele. Carvalho também se lamentou pela mentalidade dominante entre os moradores de favelas que viveram por décadas sob o controle de grupos de narcotraficantes. “Esta geração está perdida”, disse ele. “Precisamos nos concentrar nas crianças através da promoção de programas de esporte e educação.” (Grifo [sublinhado] meu) [6].

Em outro trecho, o mesmo telegrama relata as dificuldades encontradas pela polícia diante dessa situação:
Carvalho explicou, por exemplo, que os seus oficiais tiveram que conter uma revolta na favela do Chapéu Mangueira/Babilônia, após os seus moradores protestarem por não estarem recebendo benefícios em pé de igualdade com relação a outras favelas “pacificadas”. Carvalho culpou o governo do estado do Rio de Janeiro por falhas no provimento de serviços essenciais, dizendo “Não há serviços lá, e o estado não é suficientemente organizado para provê-los”. Representantes das favelas, embora geralmente apoiem o programa de pacificação, sempre mencionam a necessidade de mais programas sociais e serviços básicos. [7]

O autor do telegrama comenta, ao final, que
Assim como na contrainsurgência, a população do Rio de Janeiro é o verdadeiro centro de gravidade. […] Um dos principais desafios deste projeto é convencer a população favelada que os benefícios em submeter-se à autoridade estatal (segurança, propriedade legítima da terra, acesso à educação) superam os custos (taxas, contas, obediência civil). Assim como para a doutrina de contrainsurgência americana, não devemos esperar por resultados do dia para a noite. […] Se, contudo, o programa conquistar “mentes e corações” nas favelas e continuar a gozar do apoio genuíno do governador e do prefeito, amparados pela empresas privadas seduzidas pela perspectiva de reintegrar um milhão de moradores das favelas para os mercados formais, então este programa poderá refazer o tecido econômico e social do Rio de Janeiro. O posto [diplomático] irá trabalhar ao lado das autoridades estatais relevantes para facilitar trocas, seminários e parcerias institucionais visando este fim. [8]

Intrigado por saber que a diplomacia dos EUA vê claras semelhanças entre a “pacificação” de favelas, no Rio de Janeiro, e a doutrina de contrainsurgência estadunidense no Iraque e no Afeganistão, fiz uma rápida pesquisa sobre tal doutrina. Encontrei, na Military Review, um artigo do General Huba Wass de Czege, sugestivamente intitulado Como manter amigos e conquistar aliados, em que o autor relata, de maneira desassombrada, as especificidades da doutrina:

As técnicas de contrainsurgência mais severas da Guerra Fria e de outras épocas da história estão obsoletas — incluindo os deslocamentos forçados de populações, o recrutamento obrigatório da população local para as forças de segurança, os rígidos toques de recolher e até a pressão letal sobre os civis para se colocarem do lado do governo. A combinação da habilidosa propaganda internacional feita pelos insurgentes com a cobertura onipresente da mídia significa o fim dessas táticas que funcionaram nas selvas obscuras das Filipinas, Java Ocidental, Malásia, Vietnã e outros lugares.

O uso dessas táticas hoje ocasionaria a perda de aliados e a condenação internacional, prejudicando o alcance de objetivos nacionais vitais em outras partes. Entretanto, isolar a população dos insurgentes continua a ser um princípio consagrado das operações de contrainsurgência. Como já não é mais uma opção deslocar aldeias inteiras para locais que permitam melhor controle, a tarefa torna-se muito mais intensiva em relação à quantidade de tropas e de policiais. A nova doutrina de contrainsurgência, baseada em amplos estudos históricos, ensina que o controle e a proteção da população durante períodos conturbados, como durante uma insurgência ativa, exigem 20 soldados de segurança confiáveis para cada 1.000 habitantes.

Os soldados têm de ser capazes de reconhecer estranhos, viver entre a população local, estar presentes à noite e ser respeitados pelo menos tanto quanto os insurgentes. Os recursos necessários para tanto não parecem razoáveis para um público ocidental acostumado a níveis de policiamento de cerca de 3 homens por cada 1.000 pessoas, em um dia normal. […] Com o desenrolar dos fatos, o objetivo das relações públicas militares entre a população local é o de oferecer uma narrativa coerente e digna de crédito do sucesso, do progresso e das consequências positivas, que vá além do alcance da própria presença física do comando. Dada a natureza das operações militares, essa ampliação do alcance representa um trabalho difícil, mas é cada vez mais essencial para o sucesso. [9]

Que a “pacificação” se assemelha em muito à doutrina de contrainsurgência, disto não tenho dúvida. Resta saber quem são os insurgentes no Rio de Janeiro para justificar o emprego de recursos que “não parecem razoáveis para um público ocidental”. Ora, sabemos muito bem que os narcotraficantes não são insurgentes, mas criminosos inseridos na parte mais vulnerável do circuito internacional do comércio de drogas e armamentos. Apesar de agirem ao arrepio da lei, tais criminosos não questionam o Estado estabelecido, não querem impor um novo governo, não têm pretensões políticas.

Não são, pois, insurgentes. Muito embora as quadrilhas de narcotraficantes desafiem o monopólio estatal do uso da violência legítima (ou da sua outorgação) sobre os microterritórios que são as favelas, não parece ter sido esta a razão pela qual o Estado brasileiro tenha negligenciado o exercício de algumas das suas prerrogativas, como o fornecimento de infraestrutura técnica e social adequada, a regularização do uso do solo que permitiria legitimamente cobrar impostos sobre ele, ou, ainda, a capacidade de gerir conflitos (não há, até hoje, delegacias [esquadras] nas favelas, o que significa que o braço civil da polícia não se faz representar nestes espaços). Ao contrário, é fácil presumir que o não exercício de tais prerrogativas levou o Estado a ter o seu monopólio desafiado nas favelas.

Ademais, após os dois anos de implementação das UPPs, não presenciamos uma contraofensiva dos narcotraficantes para retomar o controle das favelas das quais foram expulsos, de maneira que o emprego de um efetivo tão elevado de policiais para o controle diuturno das favelas “pacificadas” não parece ser, parafraseando o general de Czege, razoável. Ou, ao contrário, pode ser perfeitamente razoável se considerarmos que a população favelada, esta “geração perdida”, para usar os termos do lugar-tenente do BOPE, é potencialmente insurgente. Como não temos um verdadeiro inimigo interno no Brasil, a questão é controlar de perto a sua população oprimida para que assumam as suas “responsabilidades cívicas”; isto é, para que aceitem pagar contas e taxas enquanto aguardam a duvidosa contrapartida em serviços públicos gratuitos, convencendo-os (e toda a sociedade) que tamanha presença policial e vigilância explicam-se exclusivamente para evitar o retorno da presença ostensiva das quadrilhas armadas de narcotraficantes. Eis a “doutrina da pacificação”, que começou a ser esquadrinhada no Haiti, nas “obscuras” ruas de Porto Príncipe (onde tampouco há insurgentes, mas pobres completamente desprovidos de serviços), longe da “cobertura onipresente da mídia”, para instalar-se nas favelas do Rio de Janeiro, onde as relações públicas militares e da polícia, do governo do estado e a grande mídia se esforçam por “oferecer uma narrativa coerente e digna de crédito do sucesso, do progresso e das consequências positivas, que vá além do alcance da própria presença física do comando”. Do Rio de Janeiro, é fácil imaginar que a “doutrina da pacificação” seja exportada para outras metrópoles (semi)periféricas, lá onde a incorporação de novas camadas da população pobre no circuito formal do capitalismo demandará a ruptura brutal de outras estratégias de sobrevivência.

Notas
[1] Estudo disponível no site www.firjan.org.br
[2] http://www.brasilwiki.com.br/noticia.php?id_noticia=15513
[3] http://oglobo.globo.com/rio/mat/2010/12/18/cabral-mostra-transformacao-da-seguranca-publica-no-rio-investidores-estrangeiros-em-nova-york-923322695.asp
[4] http://oglobo.globo.com/rio/mat/2010/12/13/apos-anos-de-esvaziamento-pacificacao-atrai-empresas-para-areas-proximas-favelas-923280376.asp
[5] Viewing cable 09RIODEJANEIRO329, COUNTER-INSURGENCY DOCTRINE COMES TO RIO’S FAVELAS, disponível em http://wikileaks.ch/cable/2009/09/09RIODEJANEIRO329.html .
[6] Ibid.
[7] Ibid.
[8] Ibid.
[9] General Huba Wass de Czege, 2009: Como manter amigos e conquistar aliados. In: Military Review. Setembro-outubro, p. 62-73. Disponível na Internet em http://usacac.army.mil/CAC2/MilitaryReview/Archives/Portuguese/MilitaryReview_20091031_art010POR.pdf

Fonte: Passa Palavra

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