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sábado, 30 de novembro de 2013

"O brasileiro está procurando outras maneiras de ser homem", diz historiadora

Organizadora do livro “História dos Homens no Brasil”, Mary del Priore diz que pais estão "inaugurando uma nova faceta" da masculinidade no Brasil, mas que a sociedade como um todo ainda é machista e que o sexo masculino também acaba sendo vítima dele

Brunno Kono| iG São Paulo




Thinkstock/Getty Images

Pais estão inaugurando uma nova faceta da masculinidade no Brasil, afirma historiadora Mary del Priore

“O heroísmo dos campos de batalha migrou para o cinema e a cama. Ali, no início do Século XX, forjaram-se padrões de comportamento masculino em que a coragem e bravura eram regras. ‘Dar no couro’ também era norma. O homem viril precisava ser igualmente incansável. As falhas, sempre discretamente tratadas. (...) Entre os anos 1960 e 1990, grandes rupturas: nascia o ‘metrossexual’. Um ‘novo homem’. (...) O aumento de revistas masculinas e a proliferação de serviços para cuidar e aperfeiçoar o corpo masculino (que alteraram não só o físico, mas a cabeça de muitos). Multiplicou-se a preocupação com a ‘diversidade’. Quantos homens cabem num só?”

Ex-professora da USP e especializada em História do Brasil, Mary del Priore questiona e busca responder esta dúvida em 12 textos organizados por ela e Marcia Amantino e publicados em “História dos Homens no Brasil” (Editora Unesp).

“'Bom cabrito não berra' ou 'homem não chora' são expressões populares que demonstram que a história dos homens não foi um passeio num cenário de conquistas e atos heroicos, mas também de dores e humilhações que os condenam a sofrer calados. É a história de lutas num ambiente extremamente adverso."

Em entrevista ao iG por e-mail, a historiadora afirma que o conceito de masculinidade sofreu diversas mudanças ao longo de décadas, influenciado por acontecimentos históricos: “Não existe um, mas vários homens brasileiros, pois sua ‘masculinidade’ não é um dado natural, mas uma variável construída de acordo com diferenças de classe, educação, religião, orientação sexual e até da área geográfica onde estão situados”.

De acordo com Priore, a figura paterna está “inaugurando uma nova faceta” da masculinidade no Brasil, mas que a “sociedade como um todo” ainda é machista. “Homens aprendem com as mães que o machismo nasce em casa”, diz. Leia a entrevista:

iG: Historicamente, quem é o homem brasileiro?
Mary del Priore: Ser homem ou se tornar um, saber que comportamentos adotar de acordo com sua época, é um longo aprendizado social. Algo relacionado não só às dimensões culturais, como também à política, à economia e aos debates relacionados à identidade nacional. Não existe um, mas vários homens brasileiros, pois sua "masculinidade" não é um dado natural. É uma variável construída de acordo com as diferenças de classe, educação, religião, orientação sexual e até da área geográfica onde estão situados. Mas o que vemos hoje e mereceu nossa atenção foi o fato de que eles estão procurando "outras maneiras de ser homem". E é delas que buscamos falar.

iG: De onde surgiu a ideia de montar o livro?
Mary del Priore: O livro dá continuidade a uma coleção que faço para a editora da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e que já tem outros títulos: História das Mulheres no Brasil (prêmio Jabuti 1998), História das Crianças, (prêmio Casa Grande & Senzala da Fundação Joaquim Nabuco 2000), História do Corpo, dos Esportes e agora dos Homens. Reunimos autores conhecidos por trabalhar dentro do tema e capazes de um texto agradável e informativo. Pouca gente trabalha com o assunto, preferindo escrever sobre "gênero feminino". Fomos contra a corrente e nesse aspecto, o livro é inovador e trás mil novidades.

“O nosso problema é que a maioria das mulheres não se importa em ser vista como tal (objeto sexual). E acredita que o 'fiu fiu' faz bem para a autoestima. Os homens podem mudar? Sim. Mas é preciso que as mulheres o façam antes."

iG: De que o forma o livro é inovador e que “outras maneiras de ser homem” são essas?
Mary del Priore: O capítulo sobre o homem escravo revela o passado de nossos avôs africanos, o trabalho, uniões, práticas sexuais, fugas e violências. O celibato dos padres é outro assunto novo, bem como questões polêmicas em torno de sua sexualidade: despiam a batina e brincavam de homens comuns. No mundo rural, a virilidade se construía por meio das armas e do sexo. A sífilis era o batismo de muitos. Um pai nunca anunciava o nascimento de um filho, mas de um "macho". E os filhos bastardos eram um signo de poder sexual. A introdução dos esportes e do ar livre na vida dos homens do século XIX vai lhes permitir exibir músculos, potência. O mesmo podemos dizer do homem em armas: o exército como palco para exibições sobre a força, a honra e a violência.

iG: É dito na apresentação do livro que "o Brasil continua sendo um país machista". Como mudar isso? A mudança parte da conduta do homem ou a mulher terá que brigar como já fez muitas vezes no passado?
Mary del Priore: O machismo não é especialidade brasileira e transformações da sociedade ocidental têm oferecido chances de muitas mudanças. Quanto mais se discute o tema, maior a conscientização, que vem sendo acompanhada de regras e leis. A multiplicação de delegacias da mulher, aplicações da Lei Maria da Penha, exemplos educativos na mídia, inovação nos papéis femininos são formas de buscar soluções duráveis para o patriarcalismo estrutural. O problema é que em nosso país as mulheres também são machistas: não deixam o marido lavar a roupa, nem o filho fazer a cama, se a namorada deste briga com ele é por que é p..., só gosta de ser chamada de docinho, gostosa, tudo o que for comestível, enfim. Os homens aprendem com as mães que o machismo nasce em casa. É a sociedade como um todo que é machista.

iG: Quais transformações do mundo ocidental têm oferecido chances de mudanças?
Mary del Priore: A moda, por exemplo, permitiu novas representações em torno da masculinidade. Desde o passado mais remoto os homens de elite exibiam trajes, barbas e cabelos de acordo com tendências da época. A vaidade e o culto à beleza nunca estiveram fora de suas preocupações. Da peruca com laço de fita e escarpin de saltinho à calça jeans com camiseta branca, dos veludos e cetins ao linho ou lãs inglesas, do exibicionismo barroco à severidade burguesa, a moda é um campo para explicar transformações de hábitos e maneiras masculinas de viver. O mesmo podemos dizer da música e do cinema a partir dos anos 60, que influenciaram estilos de vida e, sobretudo, mudanças no campo da sexualidade: a cena do encontro de um jovem com uma mulher mais velha – como mostrado no filme “A Primeira Noite de um Homem – expunha os riscos da virgindade e da inexperiência masculina que começava então a mudar. Transar pela "primeira vez", ir à zona, a juventude engajada na cena pública, a revolução sexual com a chegada da pílula, tudo isso revela mudanças de paradigmas. A partir dos anos 70 e 80 vemos os gays em cena e a diluição do binômio hetero/homo.

iG: Quando se fala em mudanças, campanhas como a "Chega de Fiu Fiu" são fundamentais?
Mary del Priore: Todas as campanhas que colaborem para uma valorização da mulher em outro papel que não seja o de objeto sexual é válida. Nos países desenvolvidos existem movimentos para diminuir o assédio e evitar que a imagem da mulher fique inferiorizada. Nada de revistas pornográficas ao alcance do olhar ou cartazes chamativos de lingerie, por exemplo. O nosso problema é que a maioria das mulheres não se importa em ser vista como tal. E acredita que o "fiu fiu" faz bem para a autoestima. Os homens podem mudar? Sim. Mas é preciso que as mulheres o façam antes.

iG: Em que sentido o homem brasileiro também é uma vítima? Ele é vítima da própria sociedade que projeta esta imagem do conquistador?
Mary del Priore: Sem dúvida. "Bom cabrito não berra" ou "homem não chora" são expressões populares que demonstram que a história dos homens não foi um passeio num cenário de conquistas e atos heroicos, mas também de dores e humilhações que os condenam a sofrer calados. É a história de lutas num ambiente extremamente adverso. De sobrevivência em meio às desigualdades, de conflitos e tensões.

 

Thinkstock/Getty Images

Homem também é uma vítima histórica do machismo, diz autora de "História dos Homens no Brasil"

iG: Que dores e humilhações são essas?
Mary del Priore: A aversão à homossexualidade, o horror da “cornitude” só mencionada nos sambas de Lupicínio Rodrigues (compositor brasileiro tido como criador do termo “dor de cotovelo”), a vergonha em torno do fracasso profissional ou o silêncio sobre a falta de dinheiro, as exigências de ereções permanentes e de um desempenho sexual excepcional, dúvidas quanto à fidelidade da esposa ou dos amigos, a expectativa exacerbada da família com relação ao sucesso profissional, a vergonha da doença e do envelhecimento. São dezenas de exemplos em que o sofrimento masculino vem sendo tratado com discrição e quase vergonha. Consultórios psicanalíticos estão cheios de casos em que homens procuram socorro por não saber lidar ou falar de suas limitações. O fantasma do amante, marido, profissional e pai sem arranhões ou falhas continua a incomodar e a fazer sofrer a muitos.

iG: Fizemos recentemente uma matéria sobre o “novo homem”, que deixou uma posição até então bem definida dentro da sociedade. Quem é ele para você?
Mary del Priore: Houve grande transformação anunciada, aliás, na música (Super-Homem, a Canção) de Gilberto Gil: "Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria". Onde mais se sente a mudança é na legislação sobre paternidade. Os "direitos paternos" foram substituídos por "deveres" e a autoridade, por cuidados. As novas leis esvaziaram os poderes do velho e feroz patriarca, e hoje, ao lado do pai divorciado, homossexual, viúvo, adotivo ou ausente, vamos encontrar uma nova realidade social construída cotidianamente. Na ausência de mães, cada vez mais envolvidas na vida profissional, os "pais" estão inaugurando uma nova faceta da masculinidade no País.

iG: O "novo homem" é herança de uma mudança recente ou reflexo de um consumidor que publicações voltadas para o público masculino tentam criar, uma vez que a imagem do típico machão ficou defasada?
Mary del Priore: Tudo junto, mas, também, as novas condições nas quais vivem os tais "novos homens": idade tardia para o casamento, vida de solteiro com as responsabilidades domésticas, instabilidade econômica, descoberta de que o "emprego" eterno foi trocado pelo "trabalho" intermitente, solidão nas grandes cidades, enfim, a lista é longa. A partir daí os homens se adaptaram, passaram a cozinhar, a ir ao supermercado, a levar os filhos na escola e ao pediatra, a conviver com filhos e família de outras uniões, a viver em um mundo, ele também "novo"! Aprenderam a aprender e isso é ótimo para a sociedade como um todo.


Getty Images/Kevin C. Cox

Mary sobre o MMA: "Trata-se mais da valorização do corpo compreendido como veículo de status e poder"

iG: O último capítulo do seu livro aborda o fenômeno do MMA. Em qual homem o brasileiro se espelha? No “novo” ou no lutador?
Mary del Priore: Há de tudo e para todos. Depende do nível de educação ou da aspiração pessoal de cada um e por isso falamos sempre no plural: em masculinidades. O interessante é que ao serem introduzidos no Brasil em meados do século XIX, os esportes, até os mais violentos, vinham acompanhados da ideia de que serviam ao "desenvolvimento intelectual da mocidade". Não parece ser essa a contribuição do MMA. Por outro lado, a luta não se resume a um palco para a crueldade espetacular. Os lutadores se negam a reduzi-la à dimensão da violência. Trata-se mais da valorização do corpo compreendido como veículo de status e poder. Ou de uma forma de sociabilidade específica onde se misturam lazer, esporte e estilo de vida.

iG: O homem brasileiro possui uma identidade própria construída ao longo de séculos ou ele busca referências no exterior?
Mary del Priore: Somos mestiços de brancos, negros e índios. Aqui, diferentes culturas e saberes se integraram à sociedade brasileira. Se buscamos referencias no exterior? Sim. Modos de vestir e de comportar-se, o metrossexual, o MMA, a lista é longa. Muitos homens cabem num só. Mas, no fundo, ele é brasileiro.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Por que estamos todos mais doentes?


Sim, estamos mais doentes. Todos mergulhados num mundo em que tristeza virou depressão clínica, e que daqui a pouco um eloquente e imprescindível sentimento chamado amor passará a ser classificado de “transtorno monoerótico imaginário”. Trata-se de um mundo no qual rejeitamos a ideia de sermos normais.

Identificamos certos transtornos de forma caseira, enxergamos nossas próprias “disfunções” e nos apressamos a ir a um médico (ou a uma farmácia, nos casos mais simples) em busca de remédios, antes mesmo de serem prescritos. Invadem nossas vidas cotidianas incontáveis síndromes ligadas ao trabalho, à religião, às artes, à política – a qualquer coisa, enfim, que aparentemente nos tire da condição de “normalidade”.

Esse crescente estreitamento da noção de normalidade em nossas cabeças e o excesso de diagnóstico de doenças mentais são o principal alvo de um livro curioso, fácil e provocativo, escrito pelo psiquiatra norte-americano Dale Archer. Best-seller nos EUA como “Better than normal: how what makes you different can make you exceptional”, o livro foi recém-lançado no Brasil pela editora Sextante com o título Quem disse que é bom ser normal?.

Em oito capítulos, Archer descreve oito traços de personalidade habitualmente associados a transtornos, como a ansiedade, a personalidade histriônica e o narcisismo, e afirma que não há nada errado com essas características – podem ser meros sinônimos de alguém hiperalerta, dramático (ou carismático) e autocentrado, respectivamente. Errado mesmo, só se forem características muito exacerbadas, diz o psiquiatra.

Alívio para quem, como o signatário, é impaciente e não consegue se concentrar em uma tarefa por muito tempo. Ou para quem tem variações constantes de humor. Ou para aqueles que adoram ser o centro das atenções. Enquanto isso, a psiquiatria e a medicalização da vida dão a essas pessoas o status de portadoras de sintomas de transtornos de personalidade – déficit de atenção, bipolaridade ou similares.

“Como psiquiatra, constatei que precisava olhar de forma crítica os excessos de diagnóstico e de medicação”, escreve Archer. “Mais do que isso, sinto-me na obrigação de divulgar uma mensagem nova e libertadora sobre transtornos mentais que devolve ao lugar certo – as suas mãos – o controle de sua personalidade e de sua saúde mental”.

Para ele, o remédio tem de ser o último recurso: “As pessoas entram em um consultório e saem com uma receita médica. A psicoterapia é subestimada”.

Dr. Archer não está sozinho. Há uma “euforia da depressão”, como define o psicanalista brasileiro Jorge Forbes, para quem a serotonina ficou tão popular e íntima de nós quanto o colesterol. (Se você desembarcou agora neste planeta ou, sensatamente, caminha à margem dessa “anormalidade”, convém explicar: a falta de serotonina no seu organismo pode levar a problemas como depressão, enxaqueca e insônia, males típicos deste século).

Isso vale tanto para os EUA, foco da atenção de Archer, como para o Brasil, onde o mercado de antidepressivos e estabilizadores de humor cresceu mais de 60% nos últimos cinco anos. Um mercado felicíssimo como o mundo da melancolia – cerca de R$ 2 bilhões foram movimentados de um ano para cá, segundo a consultoria IMS Health.

Mal-estar coletivo

Quem disse que é bom ser normal? pode soar bem-humorado num tema de densidade e tensão especiais. Mas o assunto é sério, como atesta a polêmica gerada pela publicação, poucos meses atrás, da nova edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), pela Associação Psiquiátrica Norte-americana (APA). A APA é a mais importante e influente entidade de psiquiatria do mundo. O DSM é considerado a “bíblia da psiquiatria”.

O chamado DSM-5 desencadeou uma série de artigos e livros questionando o caráter normativo de suas classificações – para muitos fundadas justamente num vertiginoso movimento de psiquiatrização da vida cotidiana. O documento amplia ainda mais o número de doenças mentais e, por tabela, aumenta as chances de alguém ser diagnosticado com os transtornos já existentes. Também reduz o número de sintomas necessários para que um paciente se encaixe em determinado diagnóstico.

Ou seja, mais pessoas tratadas com medicamentos destinados a transtornos mentais, sorriso aberto para a indústria farmacêutica. A propósito, 70% dos experts que trabalharam para o DSM-5 tiveram, em sua carreira recente, vínculos financeiros com essa indústria.

O avanço das doenças mentais é assombroso: o mundo da psiquiatria reconhecia 182 patologias em 1968, com a publicação do DSM-2. Doze anos depois, o DSM-3 trazia 265. Agora o número de patologias mentais se eleva a 450 categorias diagnósticas.

Poderia ser o resultado do avanço da ciência e da criação de critérios específicos para descobrir enfermidades da alma. Mas, no limite, é um discurso que, segundo os psicanalistas Gilson Iannini e Antonio Teixeira, organiza a crença mercantil da associação entre demanda e produto – no caso, doença mental e arsenal terapêutico.

Para cada classificação, uma pílula com promessa de bem-estar. É uma espécie de epidemia às avessas: as pessoas, com seus desamparos e desordens, agarram-se aos males diagnosticados e se sentem aliviadas de poder descobrir o que têm. Acham o rótulo perdido. Buscam a salvação no diagnóstico oficial. Por outro lado, são classificadas, estigmatizadas e, muitas vezes, marcadas para a vida inteira.

Definições políticas

Assunto restrito ao meio psi? Num instigante dossiê sobre o assunto, publicado na revista Cult, o filósofo Vladimir Safatle mostrou que não. Escreveu o professor da USP:

“Tudo isso poderia interessar apenas a uma comunidade limitada, composta por todos aqueles profissionais designados para tratar de problemas de saúde mental (…). Mas talvez seja o caso de colocar algumas questões. Pois, e se categorias como ‘saúde’, ‘doença’, ‘normal’ e ‘patológico’, principalmente quando aplicadas ao sofrimento psíquico, não forem meros conceito de um discurso científico, mas definições carregadas de forte potência política?”.

A pensar. Um exemplo da utilidade prática desse debate para os não-especialistas é quando o assunto chega ao Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, o TDAH. Entre seus sintomas estão incapacidade de se concentrar, atitudes impulsivas e agitação constante. O que no passado não muito distante seria considerada uma travessura infantil hoje provavelmente vira motivo para ir a um médico, que não hesita em prescrever remédios à criança ou ao adolescente.

Os critérios de diagnóstico de TDAH esperam uma criança capaz de brincar calmamente e mostram-se inversamente proporcionais aos estímulos e à competitividade a que é exposta atualmente.

Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, raros são os pais que não se preocupam dia e noite em como garantir aos filhos ocupação permanente: das brincadeiras coletivas a games; de televisão a passeios, dos tablets ao inglês e à natação, qualquer coisa é necessária para evitar que a criança conheça a solidão, a pausa e o tédio.

(Num livro recente, “The distraction addiction”, Alex Pang, um professor da Califórnia, afirmou que a vontade de se distrair é um vício, uma forma de dependência).

O fato é que tem parecido equivocada a muitos a ideia de transformar toda experiência de sofrimento em uma patologia a ser tratada. Uma vida, como diz Vladimir Safatle, cada vez mais enfraquecida e incapaz de lidar com conflitos, contradições e reconfigurações necessárias. Acrescento: uma vida de busca irrefreável da felicidade, mas incapaz de olhar de frente a tristeza e a frustração inerentes à condição de estarmos vivos.

Autor: Rodrigo de Almeida
Rodrigo de Almeida é diretor de jornalismo do iG, doutor em ciência política e, nas horas vagas, leitor de filosofia, psicanálise e literatura de não-ficção.