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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Por que estamos todos mais doentes?


Sim, estamos mais doentes. Todos mergulhados num mundo em que tristeza virou depressão clínica, e que daqui a pouco um eloquente e imprescindível sentimento chamado amor passará a ser classificado de “transtorno monoerótico imaginário”. Trata-se de um mundo no qual rejeitamos a ideia de sermos normais.

Identificamos certos transtornos de forma caseira, enxergamos nossas próprias “disfunções” e nos apressamos a ir a um médico (ou a uma farmácia, nos casos mais simples) em busca de remédios, antes mesmo de serem prescritos. Invadem nossas vidas cotidianas incontáveis síndromes ligadas ao trabalho, à religião, às artes, à política – a qualquer coisa, enfim, que aparentemente nos tire da condição de “normalidade”.

Esse crescente estreitamento da noção de normalidade em nossas cabeças e o excesso de diagnóstico de doenças mentais são o principal alvo de um livro curioso, fácil e provocativo, escrito pelo psiquiatra norte-americano Dale Archer. Best-seller nos EUA como “Better than normal: how what makes you different can make you exceptional”, o livro foi recém-lançado no Brasil pela editora Sextante com o título Quem disse que é bom ser normal?.

Em oito capítulos, Archer descreve oito traços de personalidade habitualmente associados a transtornos, como a ansiedade, a personalidade histriônica e o narcisismo, e afirma que não há nada errado com essas características – podem ser meros sinônimos de alguém hiperalerta, dramático (ou carismático) e autocentrado, respectivamente. Errado mesmo, só se forem características muito exacerbadas, diz o psiquiatra.

Alívio para quem, como o signatário, é impaciente e não consegue se concentrar em uma tarefa por muito tempo. Ou para quem tem variações constantes de humor. Ou para aqueles que adoram ser o centro das atenções. Enquanto isso, a psiquiatria e a medicalização da vida dão a essas pessoas o status de portadoras de sintomas de transtornos de personalidade – déficit de atenção, bipolaridade ou similares.

“Como psiquiatra, constatei que precisava olhar de forma crítica os excessos de diagnóstico e de medicação”, escreve Archer. “Mais do que isso, sinto-me na obrigação de divulgar uma mensagem nova e libertadora sobre transtornos mentais que devolve ao lugar certo – as suas mãos – o controle de sua personalidade e de sua saúde mental”.

Para ele, o remédio tem de ser o último recurso: “As pessoas entram em um consultório e saem com uma receita médica. A psicoterapia é subestimada”.

Dr. Archer não está sozinho. Há uma “euforia da depressão”, como define o psicanalista brasileiro Jorge Forbes, para quem a serotonina ficou tão popular e íntima de nós quanto o colesterol. (Se você desembarcou agora neste planeta ou, sensatamente, caminha à margem dessa “anormalidade”, convém explicar: a falta de serotonina no seu organismo pode levar a problemas como depressão, enxaqueca e insônia, males típicos deste século).

Isso vale tanto para os EUA, foco da atenção de Archer, como para o Brasil, onde o mercado de antidepressivos e estabilizadores de humor cresceu mais de 60% nos últimos cinco anos. Um mercado felicíssimo como o mundo da melancolia – cerca de R$ 2 bilhões foram movimentados de um ano para cá, segundo a consultoria IMS Health.

Mal-estar coletivo

Quem disse que é bom ser normal? pode soar bem-humorado num tema de densidade e tensão especiais. Mas o assunto é sério, como atesta a polêmica gerada pela publicação, poucos meses atrás, da nova edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), pela Associação Psiquiátrica Norte-americana (APA). A APA é a mais importante e influente entidade de psiquiatria do mundo. O DSM é considerado a “bíblia da psiquiatria”.

O chamado DSM-5 desencadeou uma série de artigos e livros questionando o caráter normativo de suas classificações – para muitos fundadas justamente num vertiginoso movimento de psiquiatrização da vida cotidiana. O documento amplia ainda mais o número de doenças mentais e, por tabela, aumenta as chances de alguém ser diagnosticado com os transtornos já existentes. Também reduz o número de sintomas necessários para que um paciente se encaixe em determinado diagnóstico.

Ou seja, mais pessoas tratadas com medicamentos destinados a transtornos mentais, sorriso aberto para a indústria farmacêutica. A propósito, 70% dos experts que trabalharam para o DSM-5 tiveram, em sua carreira recente, vínculos financeiros com essa indústria.

O avanço das doenças mentais é assombroso: o mundo da psiquiatria reconhecia 182 patologias em 1968, com a publicação do DSM-2. Doze anos depois, o DSM-3 trazia 265. Agora o número de patologias mentais se eleva a 450 categorias diagnósticas.

Poderia ser o resultado do avanço da ciência e da criação de critérios específicos para descobrir enfermidades da alma. Mas, no limite, é um discurso que, segundo os psicanalistas Gilson Iannini e Antonio Teixeira, organiza a crença mercantil da associação entre demanda e produto – no caso, doença mental e arsenal terapêutico.

Para cada classificação, uma pílula com promessa de bem-estar. É uma espécie de epidemia às avessas: as pessoas, com seus desamparos e desordens, agarram-se aos males diagnosticados e se sentem aliviadas de poder descobrir o que têm. Acham o rótulo perdido. Buscam a salvação no diagnóstico oficial. Por outro lado, são classificadas, estigmatizadas e, muitas vezes, marcadas para a vida inteira.

Definições políticas

Assunto restrito ao meio psi? Num instigante dossiê sobre o assunto, publicado na revista Cult, o filósofo Vladimir Safatle mostrou que não. Escreveu o professor da USP:

“Tudo isso poderia interessar apenas a uma comunidade limitada, composta por todos aqueles profissionais designados para tratar de problemas de saúde mental (…). Mas talvez seja o caso de colocar algumas questões. Pois, e se categorias como ‘saúde’, ‘doença’, ‘normal’ e ‘patológico’, principalmente quando aplicadas ao sofrimento psíquico, não forem meros conceito de um discurso científico, mas definições carregadas de forte potência política?”.

A pensar. Um exemplo da utilidade prática desse debate para os não-especialistas é quando o assunto chega ao Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, o TDAH. Entre seus sintomas estão incapacidade de se concentrar, atitudes impulsivas e agitação constante. O que no passado não muito distante seria considerada uma travessura infantil hoje provavelmente vira motivo para ir a um médico, que não hesita em prescrever remédios à criança ou ao adolescente.

Os critérios de diagnóstico de TDAH esperam uma criança capaz de brincar calmamente e mostram-se inversamente proporcionais aos estímulos e à competitividade a que é exposta atualmente.

Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, raros são os pais que não se preocupam dia e noite em como garantir aos filhos ocupação permanente: das brincadeiras coletivas a games; de televisão a passeios, dos tablets ao inglês e à natação, qualquer coisa é necessária para evitar que a criança conheça a solidão, a pausa e o tédio.

(Num livro recente, “The distraction addiction”, Alex Pang, um professor da Califórnia, afirmou que a vontade de se distrair é um vício, uma forma de dependência).

O fato é que tem parecido equivocada a muitos a ideia de transformar toda experiência de sofrimento em uma patologia a ser tratada. Uma vida, como diz Vladimir Safatle, cada vez mais enfraquecida e incapaz de lidar com conflitos, contradições e reconfigurações necessárias. Acrescento: uma vida de busca irrefreável da felicidade, mas incapaz de olhar de frente a tristeza e a frustração inerentes à condição de estarmos vivos.

Autor: Rodrigo de Almeida
Rodrigo de Almeida é diretor de jornalismo do iG, doutor em ciência política e, nas horas vagas, leitor de filosofia, psicanálise e literatura de não-ficção.

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