Sim,
estamos mais doentes. Todos mergulhados num mundo em que tristeza virou
depressão clínica, e que daqui a pouco um eloquente e imprescindível sentimento
chamado amor passará a ser classificado de “transtorno monoerótico imaginário”.
Trata-se de um mundo no qual rejeitamos a ideia de sermos normais.
Identificamos
certos transtornos de forma caseira, enxergamos nossas próprias “disfunções” e
nos apressamos a ir a um médico (ou a uma farmácia, nos casos mais simples) em
busca de remédios, antes mesmo de serem prescritos. Invadem nossas vidas
cotidianas incontáveis síndromes ligadas ao trabalho, à religião, às artes, à
política – a qualquer coisa, enfim, que aparentemente nos tire da condição de
“normalidade”.
Esse
crescente estreitamento da noção de normalidade em nossas cabeças e o excesso
de diagnóstico de doenças mentais são o principal alvo de um livro curioso,
fácil e provocativo, escrito pelo psiquiatra norte-americano Dale Archer.
Best-seller nos EUA como “Better than normal: how what makes you different can
make you exceptional”, o livro foi recém-lançado no Brasil pela editora
Sextante com o título Quem disse que é bom ser normal?.
Em
oito capítulos, Archer descreve oito traços de personalidade habitualmente
associados a transtornos, como a ansiedade, a personalidade histriônica e o
narcisismo, e afirma que não há nada errado com essas características – podem
ser meros sinônimos de alguém hiperalerta, dramático (ou carismático) e
autocentrado, respectivamente. Errado mesmo, só se forem características muito
exacerbadas, diz o psiquiatra.
Alívio
para quem, como o signatário, é impaciente e não consegue se concentrar em uma
tarefa por muito tempo. Ou para quem tem variações constantes de humor. Ou para
aqueles que adoram ser o centro das atenções. Enquanto isso, a psiquiatria e a
medicalização da vida dão a essas pessoas o status de portadoras de sintomas de
transtornos de personalidade – déficit de atenção, bipolaridade ou similares.
“Como
psiquiatra, constatei que precisava olhar de forma crítica os excessos de
diagnóstico e de medicação”, escreve Archer. “Mais do que isso, sinto-me na
obrigação de divulgar uma mensagem nova e libertadora sobre transtornos mentais
que devolve ao lugar certo – as suas mãos – o controle de sua personalidade e
de sua saúde mental”.
Para
ele, o remédio tem de ser o último recurso: “As pessoas entram em um
consultório e saem com uma receita médica. A psicoterapia é subestimada”.
Dr.
Archer não está sozinho. Há uma “euforia da depressão”, como define o
psicanalista brasileiro Jorge Forbes, para quem a serotonina ficou tão popular
e íntima de nós quanto o colesterol. (Se você desembarcou agora neste planeta
ou, sensatamente, caminha à margem dessa “anormalidade”, convém explicar: a
falta de serotonina no seu organismo pode levar a problemas como depressão,
enxaqueca e insônia, males típicos deste século).
Isso
vale tanto para os EUA, foco da atenção de Archer, como para o Brasil, onde o
mercado de antidepressivos e estabilizadores de humor cresceu mais de 60% nos
últimos cinco anos. Um mercado felicíssimo como o mundo da melancolia – cerca
de R$ 2 bilhões foram movimentados de um ano para cá, segundo a consultoria IMS
Health.
Mal-estar
coletivo
Quem
disse que é bom ser normal? pode soar bem-humorado num tema de densidade e
tensão especiais. Mas o assunto é sério, como atesta a polêmica gerada pela
publicação, poucos meses atrás, da nova edição do Manual diagnóstico e
estatístico de transtornos mentais (DSM), pela Associação Psiquiátrica
Norte-americana (APA). A APA é a mais importante e influente entidade de
psiquiatria do mundo. O DSM é considerado a “bíblia da psiquiatria”.
O
chamado DSM-5 desencadeou uma série de artigos e livros questionando o caráter
normativo de suas classificações – para muitos fundadas justamente num
vertiginoso movimento de psiquiatrização da vida cotidiana. O documento amplia
ainda mais o número de doenças mentais e, por tabela, aumenta as chances de
alguém ser diagnosticado com os transtornos já existentes. Também reduz o
número de sintomas necessários para que um paciente se encaixe em determinado
diagnóstico.
Ou
seja, mais pessoas tratadas com medicamentos destinados a transtornos mentais,
sorriso aberto para a indústria farmacêutica. A propósito, 70% dos experts que
trabalharam para o DSM-5 tiveram, em sua carreira recente, vínculos financeiros
com essa indústria.
O
avanço das doenças mentais é assombroso: o mundo da psiquiatria reconhecia 182
patologias em 1968, com a publicação do DSM-2. Doze anos depois, o DSM-3 trazia
265. Agora o número de patologias mentais se eleva a 450 categorias
diagnósticas.
Poderia
ser o resultado do avanço da ciência e da criação de critérios específicos para
descobrir enfermidades da alma. Mas, no limite, é um discurso que, segundo os
psicanalistas Gilson Iannini e Antonio Teixeira, organiza a crença mercantil da
associação entre demanda e produto – no caso, doença mental e arsenal
terapêutico.
Para
cada classificação, uma pílula com promessa de bem-estar. É uma espécie de
epidemia às avessas: as pessoas, com seus desamparos e desordens, agarram-se
aos males diagnosticados e se sentem aliviadas de poder descobrir o que têm.
Acham o rótulo perdido. Buscam a salvação no diagnóstico oficial. Por outro
lado, são classificadas, estigmatizadas e, muitas vezes, marcadas para a vida
inteira.
Definições
políticas
Assunto
restrito ao meio psi? Num instigante dossiê sobre o assunto, publicado na
revista Cult, o filósofo Vladimir Safatle mostrou que não. Escreveu o professor
da USP:
“Tudo
isso poderia interessar apenas a uma comunidade limitada, composta por todos
aqueles profissionais designados para tratar de problemas de saúde mental (…).
Mas talvez seja o caso de colocar algumas questões. Pois, e se categorias como
‘saúde’, ‘doença’, ‘normal’ e ‘patológico’, principalmente quando aplicadas ao
sofrimento psíquico, não forem meros conceito de um discurso científico, mas
definições carregadas de forte potência política?”.
A
pensar. Um exemplo da utilidade prática desse debate para os não-especialistas
é quando o assunto chega ao Transtorno do Déficit de Atenção com
Hiperatividade, o TDAH. Entre seus sintomas estão incapacidade de se
concentrar, atitudes impulsivas e agitação constante. O que no passado não
muito distante seria considerada uma travessura infantil hoje provavelmente
vira motivo para ir a um médico, que não hesita em prescrever remédios à
criança ou ao adolescente.
Os
critérios de diagnóstico de TDAH esperam uma criança capaz de brincar calmamente
e mostram-se inversamente proporcionais aos estímulos e à competitividade a que
é exposta atualmente.
Ao
mesmo tempo, e paradoxalmente, raros são os pais que não se preocupam dia e
noite em como garantir aos filhos ocupação permanente: das brincadeiras
coletivas a games; de televisão a passeios, dos tablets ao inglês e à natação,
qualquer coisa é necessária para evitar que a criança conheça a solidão, a
pausa e o tédio.
(Num
livro recente, “The distraction addiction”, Alex Pang, um professor da Califórnia,
afirmou que a vontade de se distrair é um vício, uma forma de dependência).
O
fato é que tem parecido equivocada a muitos a ideia de transformar toda
experiência de sofrimento em uma patologia a ser tratada. Uma vida, como diz
Vladimir Safatle, cada vez mais enfraquecida e incapaz de lidar com conflitos,
contradições e reconfigurações necessárias. Acrescento: uma vida de busca
irrefreável da felicidade, mas incapaz de olhar de frente a tristeza e a
frustração inerentes à condição de estarmos vivos.
Autor:
Rodrigo de Almeida
Rodrigo de Almeida é diretor de jornalismo do iG, doutor em ciência política e, nas horas vagas, leitor de filosofia, psicanálise e literatura de não-ficção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário