*Egon Heck
O que poderia ser mais um dia normal na Universidade Federal da Grande Dourados -UFGD tornou-se um momento memorável para algumas dezenas de formandos Kaiowá Guarani, que concluíram o Curso de Licenciatura Indígena Teko Arandu. O curso é resultado de um árduo trabalho, sonhos e insônias de dezenas de professores Guarani Kaiowá e seus apoiadores. Numa bela manhã de primavera, o grande auditório da universidade, com capacidade para mais de mil pessoas, começou a ter um movimento um tanto diferente. Na sala de entrada uma rara cena em que ansiosos jovens da cor da terra e olhos puxados para o horizonte, montavam um cenário de interação de culturas e símbolos, resultado de um esforço de interculturalidade. Becas, cocares, colares, pinturas davam conta do sincretismo de um ritual celebrativo de formatura da primeira turma de do Curso de Licenciatura Kaiowá Guarani com especialidade em ciências sociais, linguagem, matemática e ciências ambientais.
Ao ver aquele belo e inusitado ambiente de alegria e cores, perguntei ao diretor do curso, professor Antônio Dari Ramos, porque a opção pelas vestimentas formais de formatura – becas, togas, faixas... Ele foi categórico ao afirmar que essa foi uma decisão dos formandos, depois de anos de discussão a esse respeito. A principal justificativa era de que, se os demais alunos da Universidade se formavam desta forma, porque eles não poderiam também. Ou seja, entendiam eles que poderia ser mais uma forma de discriminação ao invés de uma valorização da diferença.
O ritual: a interculturalidade possível e visível
O Reitor da UFGD, Damião Duque de Farias, com muita honestidade situou essa conquista importante do movimento indígena como um passo possível dentro da construção da Universidade Intercultural Indígena. Além da formatura da primeira turma, ele assinou a criação da Faculdade de Estudos Indígenas. No final pediu perdão aos indígenas pelo fato da universidade nem sempre ter conseguido responder às expectativas, direitos e demandas do movimento indígena.
A diferença pôde ser percebida pela presença de lideranças indígenas em todas as mesas constituídas na solenidade e pelo ritual religioso que abençoou o evento, trazendo energias para os 39 formandos Kaiowá Guarani. Uma nhandesi, líder religiosa, foi também paraninfa do grupo, fazendo sua fala aos formandos em guarani.
O juramento foi também feito em guarani, quando assumiram a responsabilidade com os direitos de seu povo e de suas aldeias, através de sua atuação em favor da comunidade, e da construção de uma escola com autonomia e de afirmação da identidade e vida de seu povo.
O Cocar e a toga foram se revezando no decorrer da cerimônia.
Fala Guerreira
“Sonhávamos uma universidade que atendesse as demandas dos nossos tekohá (terras tradicionais indígenas), que ouvisse e respeitasse as especificidades próprias dos professores Kaiowá Guarani e do nosso povo, através da partilha de cosmovisões, saberes e práticas diferenciadas, da construção coletiva de conhecimentos, que só acontece pelo diálogo entre as pessoas que se dispõem a construir um diálogo intercultural”, afirmou Valdelice Veron – Xamiri Nhupoty, a oradora do grupo. Após historiar o difícil, mas gratificante processo de construção do curso, até o sonho se tornar realidade, afirmou que “ainda necessitamos mais sobre a sabedoria de nossos ancestrais – teko arandu -e construir caminhos novos para enfrentar os graves desafios que nosso povo está vivendo hoje, tais como a recuperação de nossas terras tradicionais, e viabilizar uma gestão territorial Kaiowá guarani, sustentável, autônoma, de acordo com nosso modo próprio de ser e viver.” Incentivou os novos cursistas conclamando-os a não desanimarem mas a continuarem “firmes na luta, pois temos muito ainda a fazer por nosso povo e pela humanidade”. E no final de sua fala prestou “homenagem a todos os Kaiowá Guarani que tombaram na luta pela terra e aos professores que se foram”. Foi aplaudida ao fazer essa menção. Ainda está presente na memória de todos, não apenas o assassinato de seu pai, Marcos Veron, mas dos professores Jenivaldo e Rolindo(2009), no Ypo’i, e de tantas lideranças assassinadas nestas últimas décadas, desde Marçal (1983) a Teodoro (setembro de 2011).
Um pouco da História e perspectivas
O curso de Licenciatura Intercultural Kaiowa Guarani é resultado de um árduo e incansável sonho e luta dos professores desse povo, juntamente com amigos e apoiadores de várias instituições aliadas. O movimento de professores, iniciado na década de 80, e que hoje chega a quase 300 professores, teve sem dúvida atuação protagonista nesta iniciativa. O professor Levi Marques, patrono da turma, traçou esse rápido histórico, de sonho, luta e lágrimas, como afirmou irmã Anari: “Só Deus sabe quantas lágrimas foram derramadas para que esse curso saísse do sonho para a realidade.” Explicou que inicialmente a proposta do curso era de que ele se realizasse na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul-UFMS. A determinada altura das negociações, não houve mais condições de diálogo com o reitor, o que levou os professores indígenas a pedirem de volta a proposta do curso. Foi então que a ideia recebeu guarida por professores e o reitor da recém fundada UFGD, em 2005.
Da primeira turma de 50 alunos que iniciaram o curso em 2006, se formaram 39. Mais de uma centena de alunos entraram nas seleções subsequentes. Hoje o principal desafio é aprofundar a interculturalidade, ou seja, como fazer dialogar os conhecimentos acadêmicos com a sabedoria tradicional. Como evitar que um se sobreponha ao outro, mas o respeite, numa complementaridade que enriqueça a todos. Conforme o diretor do curso, Dari, essa é uma preocupação permanente e recorrente, que irá exigir um grande esforço no sentido de “descolonizar” a universidade e colocá-la na dimensão do diálogo igualitário com as diferenças, no caso dos Kaiowá Guarani. Outro desafio que ele aponta é como o curso não se distanciar do diálogo com a base, mantendo um vínculo permanente com as aldeias e uma presença sempre maior, nesse espaço, dos conhecimentos e saberes tradicionais. Quanto às perspectivas ele acredita serem promissoras, devendo ir na direção de uma gestão mais participativa, num diálogo mais permanente e respostas mais concretas às demandas do povo e das comunidades.
É momento de festa, de celebração, de alegria, pela vitória e conquista, que não é apenas individual, mas das famílias, das comunidades, do povo Guarani Kaiowá. Parabéns a esse povo guerreiro e lutador. Agradecimentos sinceros foram expressos a todos aqueles que acreditaram e tornaram esse sonho realidade. Dentre os batalhadores desta proposta de curso intercultural, estão inúmeras pessoas, que foram lembradas em diversos momentos, como Antônio Brand e Adir Casaro,UCDB, Veronice (que trabalhou no Cimi), Irmã Anari/Cimi, educadora, com muitos anos de dedicação à educação escolar indígena, na aldeia Te’YKue (Caarapó), dentre muitos. Especial referência foi feito ao professor Renato Gomes Nogueira-UFGD (in memória), que abraçou a causa e com teimosia e com competente persistência conseguiu levar a proposta adiante. Em reconhecimento seu nome foi escolhido como nome da turma.
*Egon Heck é membro do Conselho Indigenista Missionário no MS
Ao ver aquele belo e inusitado ambiente de alegria e cores, perguntei ao diretor do curso, professor Antônio Dari Ramos, porque a opção pelas vestimentas formais de formatura – becas, togas, faixas... Ele foi categórico ao afirmar que essa foi uma decisão dos formandos, depois de anos de discussão a esse respeito. A principal justificativa era de que, se os demais alunos da Universidade se formavam desta forma, porque eles não poderiam também. Ou seja, entendiam eles que poderia ser mais uma forma de discriminação ao invés de uma valorização da diferença.
O ritual: a interculturalidade possível e visível
O Reitor da UFGD, Damião Duque de Farias, com muita honestidade situou essa conquista importante do movimento indígena como um passo possível dentro da construção da Universidade Intercultural Indígena. Além da formatura da primeira turma, ele assinou a criação da Faculdade de Estudos Indígenas. No final pediu perdão aos indígenas pelo fato da universidade nem sempre ter conseguido responder às expectativas, direitos e demandas do movimento indígena.
A diferença pôde ser percebida pela presença de lideranças indígenas em todas as mesas constituídas na solenidade e pelo ritual religioso que abençoou o evento, trazendo energias para os 39 formandos Kaiowá Guarani. Uma nhandesi, líder religiosa, foi também paraninfa do grupo, fazendo sua fala aos formandos em guarani.
O juramento foi também feito em guarani, quando assumiram a responsabilidade com os direitos de seu povo e de suas aldeias, através de sua atuação em favor da comunidade, e da construção de uma escola com autonomia e de afirmação da identidade e vida de seu povo.
O Cocar e a toga foram se revezando no decorrer da cerimônia.
Fala Guerreira
“Sonhávamos uma universidade que atendesse as demandas dos nossos tekohá (terras tradicionais indígenas), que ouvisse e respeitasse as especificidades próprias dos professores Kaiowá Guarani e do nosso povo, através da partilha de cosmovisões, saberes e práticas diferenciadas, da construção coletiva de conhecimentos, que só acontece pelo diálogo entre as pessoas que se dispõem a construir um diálogo intercultural”, afirmou Valdelice Veron – Xamiri Nhupoty, a oradora do grupo. Após historiar o difícil, mas gratificante processo de construção do curso, até o sonho se tornar realidade, afirmou que “ainda necessitamos mais sobre a sabedoria de nossos ancestrais – teko arandu -e construir caminhos novos para enfrentar os graves desafios que nosso povo está vivendo hoje, tais como a recuperação de nossas terras tradicionais, e viabilizar uma gestão territorial Kaiowá guarani, sustentável, autônoma, de acordo com nosso modo próprio de ser e viver.” Incentivou os novos cursistas conclamando-os a não desanimarem mas a continuarem “firmes na luta, pois temos muito ainda a fazer por nosso povo e pela humanidade”. E no final de sua fala prestou “homenagem a todos os Kaiowá Guarani que tombaram na luta pela terra e aos professores que se foram”. Foi aplaudida ao fazer essa menção. Ainda está presente na memória de todos, não apenas o assassinato de seu pai, Marcos Veron, mas dos professores Jenivaldo e Rolindo(2009), no Ypo’i, e de tantas lideranças assassinadas nestas últimas décadas, desde Marçal (1983) a Teodoro (setembro de 2011).
Um pouco da História e perspectivas
O curso de Licenciatura Intercultural Kaiowa Guarani é resultado de um árduo e incansável sonho e luta dos professores desse povo, juntamente com amigos e apoiadores de várias instituições aliadas. O movimento de professores, iniciado na década de 80, e que hoje chega a quase 300 professores, teve sem dúvida atuação protagonista nesta iniciativa. O professor Levi Marques, patrono da turma, traçou esse rápido histórico, de sonho, luta e lágrimas, como afirmou irmã Anari: “Só Deus sabe quantas lágrimas foram derramadas para que esse curso saísse do sonho para a realidade.” Explicou que inicialmente a proposta do curso era de que ele se realizasse na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul-UFMS. A determinada altura das negociações, não houve mais condições de diálogo com o reitor, o que levou os professores indígenas a pedirem de volta a proposta do curso. Foi então que a ideia recebeu guarida por professores e o reitor da recém fundada UFGD, em 2005.
Da primeira turma de 50 alunos que iniciaram o curso em 2006, se formaram 39. Mais de uma centena de alunos entraram nas seleções subsequentes. Hoje o principal desafio é aprofundar a interculturalidade, ou seja, como fazer dialogar os conhecimentos acadêmicos com a sabedoria tradicional. Como evitar que um se sobreponha ao outro, mas o respeite, numa complementaridade que enriqueça a todos. Conforme o diretor do curso, Dari, essa é uma preocupação permanente e recorrente, que irá exigir um grande esforço no sentido de “descolonizar” a universidade e colocá-la na dimensão do diálogo igualitário com as diferenças, no caso dos Kaiowá Guarani. Outro desafio que ele aponta é como o curso não se distanciar do diálogo com a base, mantendo um vínculo permanente com as aldeias e uma presença sempre maior, nesse espaço, dos conhecimentos e saberes tradicionais. Quanto às perspectivas ele acredita serem promissoras, devendo ir na direção de uma gestão mais participativa, num diálogo mais permanente e respostas mais concretas às demandas do povo e das comunidades.
É momento de festa, de celebração, de alegria, pela vitória e conquista, que não é apenas individual, mas das famílias, das comunidades, do povo Guarani Kaiowá. Parabéns a esse povo guerreiro e lutador. Agradecimentos sinceros foram expressos a todos aqueles que acreditaram e tornaram esse sonho realidade. Dentre os batalhadores desta proposta de curso intercultural, estão inúmeras pessoas, que foram lembradas em diversos momentos, como Antônio Brand e Adir Casaro,UCDB, Veronice (que trabalhou no Cimi), Irmã Anari/Cimi, educadora, com muitos anos de dedicação à educação escolar indígena, na aldeia Te’YKue (Caarapó), dentre muitos. Especial referência foi feito ao professor Renato Gomes Nogueira-UFGD (in memória), que abraçou a causa e com teimosia e com competente persistência conseguiu levar a proposta adiante. Em reconhecimento seu nome foi escolhido como nome da turma.
*Egon Heck é membro do Conselho Indigenista Missionário no MS
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