Sucesso de ficção erótica coloca em evidência a importância das regras nas práticas de dominação, submissão e dor
Ricardo Donisete- iG São Paulo
Hoje, se você for viajar de avião, as chances de alguém na poltrona ao lado estar lendo “Cinquenta Tons de Cinza” são imensas.
Ricardo Donisete- iG São Paulo
Hoje, se você for viajar de avião, as chances de alguém na poltrona ao lado estar lendo “Cinquenta Tons de Cinza” são imensas.
Thinkstock/Getty Images/Como em “Cinquenta Tons de Cinza”, as fantasias sexuais entre os casais, sadomasoquistas ou não, sempre são objeto de negociação
O livro de E.L.James, publicado no Brasil pela editora Intrínseca, em menos de 20 dias desde o seu lançamento já vendeu mais de 100 mil exemplares! Um total sucesso!
Ainda mais porque os ‘50 tons’ conta a história de um casal tentando fazer caber uma paixão na moldura, às vezes apertada, das fantasias sadomasoquistas.
Para Christian, o protagonista, o sexo é vivido através de práticas sadomasoquistas. Para Anastasia, a mocinha da história, jovem e virgem, o sexo é um mar de descobertas, todas nascidas da paixão que ela sente pelo belíssimo, riquíssimo e poderosíssimo, Christian.
Entre uma e outra cena tórrida de sexo, o livro é o relato da negociação das fantasias sexuais que o casal precisa fazer todo tempo.
“Para Christian e Anastasia, como, aliás, para a grande maioria dos casais reais”, comentou Contardo Calligaris, em sua coluna na Folha de São Paulo, “a fantasia é um objeto de negociação, não só dentro do casal (entre o que você gosta e o que eu aceito --e vice-versa), mas sobretudo no âmago do indivíduo, entre o que a fantasia de cada um imagina e o que cada um, de fato, aguenta.”
E como, no caso, a fantasia envolve práticas de dominação e submissão que podem (e devem até) gerar dor, essa negociação tem que se concretizar num contrato que não se sabe se jamais será assinado, mas que é o centro das discussões do casal.
Com quatro páginas, o documento que Christian submete à aprovação de Anastasia determina desde os dias que ela estará à disposição dele aos detalhes das sessões de dominação que ela permitirá, como demonstra o trecho: “15.11 O Dominador poderá prender, algemar ou amarrar a Submissa a qualquer momento durante as Horas Designadas ou em quaisquer horas extras acordadas por qualquer razão...”.
Divulgação/"Cinquenta Tons de Cinza" jogou luz sobre o universo BDSM
Com 21 itens, que se subdividem em inúmeros subitens, o contrato expõe a obsessão que Christian tem por dominar e controlar tudo. No artigo 15.21, ele escreve que Anastasia "aceitará ser chicoteada, açoitada, espancada, varejada ou surrada” sem hesitação ou qualquer questionamento.
Aliás, até os olhares de Anastasia o empresário quer controlar, como explicita o parágrafo seguinte: “A Submissa não olhará diretamente nos olhos do Dominador salvo quando especificamente instruída a fazê-lo”.
Engana-se quem pensa que essa negociação e o documento que ela gera é coisa de ficção. Pelo contrário, a prática do sadomasoquismo fora das páginas do livro também é muito bem definida e cheia de regras e de compromissos de parte a parte.
Hanna Domme, uma secretária paulistana de 31 anos, que prefere se identificar pelo apelido que tem no meio para manter a privacidade, também fez um contrato com o seu parceiro, um técnico de áudio de 28 anos que usa o pseudônimo Le Fetiche.
“Foi um gesto simbólico, um maneira de firmar o compromisso um com o outro. Mais importante que o contrato de papel, no entanto, é a conversa, o acordo que você faz com seu parceiro antes de começar a fazer o BDSM”, conta Hanna, citando a sigla que descreve a prática fetichista, que significa Bondage, Dominação, Sadismo e Masoquismo. O primeiro termo se refere à técnica de amarração com cordas.
Além de definir quem vai dominar e quem vai se submeter e, consequentemente, bater e apanhar, os acordos determinam também a maneira que serão aplicados os “castigos”. E, mais importante, eles ainda definem qual vai ser o código de segurança do casal, uma palavra-chave ou frase que indica que o submisso (a) quer parar de ser seviciado, impedindo que, num momento de mais emoção, a dominação vá longe demais e ameace a integridade física do outro.
“O objetivo é ter e dar prazer, se divertir. Afinal, ninguém quer quebrar o próprio brinquedinho erótico”, provoca Hanna, dominadora convicta, com uma risada gostosa, referindo-se de forma irônica ao seu parceiro, um submisso.
Hanna e Le Fetiche, ao lado de outros casais, são personagens do documentário independente “Liturgia do Prazer” (60 m), dirigido pelos jornalistas Matheus Paggi e Rafael Bergamaschi. Ainda inédito no circuito comercial e prestes a entrar no circuito de festivais brasileiros, o filme disseca a rotina dos praticantes de BDSM na cidade de São Paulo.
Com imagens (algumas bastante fortes) de casais em ação, o documentário mostra como esse universo é muito mais organizado do que se costuma pensar. “Não é tudo bagunçado e selvagem como a maioria das pessoas pensa. Na verdade, os praticantes de BDSM agem de acordo com regras e rituais pré-determinados”, explica Matheus.
O jornalista, no entanto, pondera que os sadomasoquistas não agem todos da mesma maneira. “Alguns são mais flexíveis e não ficam tão apegados às regras e rituais. Já outros são mais rígidos e seguem práticas nada ‘light’, baseadas nos escritos do Marques De Sade”, esclarece o codiretor, referindo-se ao escritor francês do século 18, inspirador do termo sadismo e autor de obras que abordavam o prazer sexual a partir da provocação de dor física nos parceiros.
Festas BDSM: combinados escancarados
Marília Loschi, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, também investigou esse universo por meio de uma tese de mestrado, que se debruçou particularmente num acontecimento muito importante nessa comunidade: as Festas BDSM. Abertos não só aos iniciados, mas também aos “curiosos”, esses eventos são realizados sem muita divulgação prévia, principalmente nas capitais São Paulo e Rio. Nessas ocasiões, a dominação e a submissão são feitas entre parceiros na frente de outros praticantes, publicamente.
“As festas querem legitimar e reivindicar para os seus participantes o direito de exercer sua sexualidade como bem lhes convier, dentro de uma inspiração democrática e igualitária, tipicamente moderna, de respeito às diferenças e valorização do consentimento”, analisa Marília, que transformou sua pesquisa na tese “A dor no corpo: identidade, gênero e sociabilidade em festas BDSM no Rio de Janeiro”.
Reprodução/A rede social FetLife serve como ponto de encontro para os adeptos do BDSM
Matheus também percebe essa intenção de legitimação das práticas sadomasoquistas das festas. “Querendo ou não, quem faz BDSM acaba vivendo num gueto. A festas permitem que eles fiquem menos isolados, troquem informações, compartilhem regras e conheçam outras pessoas que gostam do mesmo que eles”, reflete o jornalista, que aponta a internet também como um instrumento de conexão entre os participantes. Especialmente o site FetLife, uma rede social de sadomasoquistas.
Vivendo ou não num gueto, na opinião de Marília, os praticantes do BDSM devem ser vistos além da questão do prazer relacionado à dor. “É plenamente possível que uma pessoa pratique o BDSM sem o menor interesse em sofrer ou causar dor física. São milhões de possibilidades que ultrapassam o bater-apanhar, mas todas elas envolvem algum tipo de entrega de si ao poder de um outro”, sentencia a cientista social.
É justamente para regular essa entrega ao poder do outro que existe o contrato de “50 Tons”. É ele que permite que dois adultos, consensualmente, possam viver plenamente suas fantasias sexuais, assegurando que elas sejam prazerosas para os dois e que não ameacem a integridade física de nenhuma das partes, claro.
Obviamente que entre colegas de Hanna e os frequentadores do Fetlife existem grupos que exercitam formas nada lights do BDSM, que podem até parecer chocantes para outros . Mas independente do gosto de cada um, o que garante o prazer para ambos é mesmo o acordo, que pode estar escrito num papel ou não.
Pequeno Dicionário do BDSM
Baunilha: termo que os praticantes do BDSM usam para definir os casais fora do meio, que fazem o sexo “comum”.
BDSM: Bondage, Dominação, Sadismo e Masoquismo.
Bondage: arte de dominar e amarrar o parceiro durante o sexo.
Encoleiramento: uma espécie de noivado, onde o submisso recebe uma coleira e assume o seu compromisso com seu dominador.
Masoquismo: prazer em sentir dor. O termo deriva do nome do escritor austríaco Leopold von Sacher-Masoch, que escreveu o livro “A Vênus de Peles” (1870), no qual um personagem tem um orgasmo após ser surrado pelo amante da sua esposa.
Sadismo: prazer sexual a partir da provocação de dor física e moral nos parceiros. O escritor e filósofo Marques de Sade inspirou o termo por tratar do tema em suas obras.
Safeword: Palavra ou frase de segurança que indica que o parceiro chegou ao limite e quer parar a brincadeira.
Ótimo post! Parabens pela criatividade
ResponderExcluirObrigada pelo comentário.Contamos com seu retorno ao blog.
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