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quinta-feira, 9 de agosto de 2012

“Professora, já imaginou, eu deixar de ser servente de pedreiro e virar engenheiro?!”

por Luana Tolentino, especial para o Viomundo

Há anos sofro com constantes crises de enxaqueca. Ontem, por exemplo, passei a tarde inteira trancada num quarto escuro sem conseguir ao menos abrir os olhos, tamanha a minha dor.

Para aumentar o meu calvário, estava sozinha em casa quando o telefone tocou. Pensei em não atender: poderia ser, sei lá, uma operadora de telemarketing da editora Abril tentando me vender a todo custo uma assinatura da Veja. Por outro lado, imaginei que pudesse ser alguém querendo dar uma notícia importante, urgente. A segunda opção falou mais alto. Com a sensação de que minha cabeça pesava uma tonelada, levantei para atender a ligação. Todo o meu esforço valeu a pena! Era o Ronie, um ex-aluno que tive o privilégio de dar aulas no ano passado.

Ronie me proporcionou uma das maiores alegrias de toda a minha vida! Aluno exemplar, tive a oportunidade de vê-lo ingressar na Universidade por meio do programa de Ações Afirmativas da ONG Educafro, em parceria com o Centro Universitário de Belo Horizonte, tradicional instituição de ensino superior de Minas Gerais. Aprovado no vestibular, Ronie ganhou uma bolsa de estudos e hoje cursa Engenharia Elétrica.

As notícias não poderiam ser melhores. O garoto de 18 anos acabou de concluir o primeiro dos 10 períodos necessários para se graduar na área que escolheu. Ronie contou que suas notas foram excelentes, variaram entre 80 e 90 pontos em cada disciplina. Após algumas entrevistas, ele está na expectativa de ser contratado como estagiário por uma grande empresa de construção civil. Segundo Ronie, os pais estão muito orgulhosos do filho caçula. O primeiro da família a cursar uma faculdade.

Ao ouvi-lo falar com tanto entusiasmo dessa nova etapa de sua vida, a professora aqui não se aguentava de tanta felicidade! Vibrava como se fosse eu a caloura. Ronie falou ainda que matriculou-se num curso de inglês e já faz planos para fazer um intercâmbio. Contou dos novos amigos, das festas e dos churrascos promovidos pela turma. Com a autoridade de quem carrega no currículo inesquecíveis aventuras etílicas nos tempos do curso de História, aconselhei-o: Fique longe dos botecos hein, rapaz?! Uma gargalhada sonora se fez nos dois lados da linha, que só foi interrompida quando ele perguntou:

– Professora, a senhora já imaginou, eu deixar de ser servente de pedreiro e virar engenheiro?!

Emudeci. Às vezes os alunos esquecessem que nós professores nem sempre temos as respostas na ponta da língua. Embora parecesse simples, naquele instante fui incapaz de responder à pergunta do futuro engenheiro. Sem compreender o motivo do meu silêncio, Ronie insistiu:
– Professora? A senhora tá me ouvindo?

Respondi com um sim meio engasgado. Não consegui dizer nada além disso. Nos despedimos com a promessa de que em breve eu teria mais noticias boas. Ao desligar o telefone, lamentei o fato de ter respondido à pergunta de forma monossilábica. Mas, hoje, ja refeita e consciente da magnitude da mudança que está em curso na vida do meu ex-aluno, telefonei e disse que vejo nele um engenheiro bem-sucedido, feliz, realizado. Disse ainda que se em algum momento alguém tentasse negar a sua alteridade ou duvidasse de sua capacidade, que seguisse em frente, de cabeça erguida, na certeza de que possuir um diploma universitário é um direito que ele tem.

Ronie se junta às centenas de jovens negros que, desde 2003, quando o sistema de cotas foi implantado de forma pioneira na UERJ, tiveram a oportunidade de ingressar no ensino superior, e assim criar possibilidades reais de combate à vergonhosa desigualdade racial existente entre brancos e não-brancos no Brasil. Ele corrobora com as estatísticas que atestam que estudantes cotistas tem rendimento igual ou superior ao dos demais alunos, desmistificando a teoria defendida por muitos de que esse tipo medida reparatória provocaria a queda da qualidade dos cursos.

Num país em que apenas 4% da população negra está matriculada em instituições de ensino superior, Ronie é mais um exemplo da eficácia das cotas como instrumento de reversão do quadro de injustiça no qual se encontra a população afro-descendente. Em artigo publicado em 2007, o antropólogo Kabengele Munanga é categórico ao dizer que experiências realizadas em outros países mostram que este tipo de medida propicia dentre outros benefícios, a maior representatividade de negros em espaços majoritariamente ocupados por brancos e uma visível mobilidade socioeconômica.

Com a aprovação da Constitucionalidade das cotas pelo Supremo Tribunal Federal (10X0!!!!!!!) em abril passado, a expectativa é que aumente o número de universitários negros, principalmente em instituições públicas, e que exemplos como os do Ronie se multipliquem pelo país.

Ronie alimenta as minhas esperanças de que um Brasil mais equânime no que diz respeitos as relações raciais e sociais é possível, ainda que o caminho a ser percorrido seja longo, difícil, tortuoso. A corrente contrária aos programas de ações afirmativas é grande, o que era de se esperar num país extremamente racista como o nosso. Mas, tudo bem. Por ora, pouco me importa os que, embriagados pelo mito da democracia racial, insistem em dizer que cotas são esmolas, ou como disse um famoso jornalista, que elas “são uma ameaça concreta ao nosso convívio “harmonioso””. Agora, só me interessa comemorar com todo ardor esse momento único. Muito!

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