As
taxas de suicídio se incrementam num contexto marcado pela incerteza e
perplexidade, e os mais expostos são os jovens que, tendo de construir seu
percurso em espaços de alta competitividade, infelizmente sucumbem
Portanto,
a primeira questão que se impõe é por que tantos suicídios acontecem com jovens
bem-sucedidos na atualidade. Isso não quer dizer, evidentemente, que não
ocorram suicídios como esses em faixas etárias outras. Porém, o fato de
ocorrerem com jovens tem a potência de nos consternar particularmente, pois se
trata de pessoas que tinham uma vida pela frente e muitas possibilidades de
resolução dos impasses existenciais que se colocam para todos nós. Por que
então esses jovens são lançados abruptamente para o gesto fatal contra si
mesmos, sem reconhecerem os horizontes que ainda existiam para eles?
Para
responder a isso, é necessário o reconhecimento de que se trata de um fenômeno
complexo, que exige uma reflexão que lance mão de um conjunto de saberes, para
que não se caia numa banalização psicologista e psicopatológica desse
acontecimento limite. Com efeito, é preciso aludir não apenas à teologia e à
política, como também ao arsenal das ciências humanas.
Como
se sabe, os suicídios não são geralmente divulgados pela mídia. Existe uma
interdição em relação a isso, pois se supõe que as narrativas de suicídios
possam gerar outros, numa espécie de reação em cadeia. Além disso, essa
interdição visa a proteger os familiares dos suicidas, em decorrência do
estigma presente nesse tipo de ato fatal.
Contudo,
não se pode esquecer que o suicídio é um ato proibido por uma longa tradição
religiosa no Ocidente, pois, se Deus nos concedeu a vida, só ele teria o poder
de retirá-la. O que implica dizer que, nessa tradição, o indivíduo não teria a
liberdade de decidir sobre a própria vida/morte, de forma que se impõe a ele
ter que suportar as angústias da existência, inventando formas de lidar com
elas.
Esse
imperativo religioso foi refundado com a constituição da sociedade moderna, de
acordo com Foucault em Vigiar e Punir. Segundo ele, a modernidade se forjou
pelo imperativo de promover a vida e afastar a sedução da morte, na medida em
que a vida se transformou no campo fundamental para o exercício do poder. Com
efeito, se pelo poder disciplinar e pelo biopoder a vida é promovida e a morte
apenas acontece quando se torna inevitável, no poder soberano pré-moderno o soberano
fazia morrer e deixava viver. Foi em decorrência disso que a modernidade foi
marcada por uma intensa e disseminada medicalização do espaço social, na medida
em que a saúde foi transformada num dos indicadores fundamentais da qualidade
de vida da população e da riqueza do Estado-nação. Daí porque a eutanásia foi
proibida em nossa tradição, interdição essa que se mantém ainda hoje, não
obstante as múltiplas reações provocadas face a isso na atualidade, em
decorrência dos sofrimentos de doentes terminais.
Como
se pode reconhecer, a interdição do suicídio conjuga intimamente uma dimensão
religiosa com uma dimensão política, de forma que a vida seria regulada pelo
poder de Deus e do Estado. Não é, pois, espantoso que o suicídio seja objeto de
estigma, provocando horror na população em geral e nos familiares e amigos dos
suicidas. No que concerne a isso, é preciso reconhecer que se a perda de alguém
que nos é próximo, seja amigo ou familiar, nos é sempre dolorosa, a morte por
suicídio é trágica. Com efeito, para esses casos a pergunta que sempre se impõe
é se não poderíamos ter impedido o desfecho trágico, se não ficamos cegos e
surdos aos múltiplos sinais enviados pelo sujeito. Portanto, a culpa é
inevitável entre aqueles que foram próximos dos sujeitos que se mataram, culpa
essa que vai marcar suas vidas. Enfim, se os suicidas tiveram que fazer a
transgressão limite para realizarem seu ato fatal, pelos interditos religiosos
e políticos que delineiam o campo dessa experiência, os familiares e amigos se
sentem igualmente responsabilizados por não terem impedido o desfecho.
É
inegável que na nossa tradição o ato suicida implica uma situação limite para o
sujeito, que se reconhece encontrar num beco sem saída para realizar tal ato. O
que implica dizer que, para perpetrar tal transgressão, o sujeito atravessa uma
profunda experiência de angústia indizível. Porém, pode-se dizer também que
essa experiência se conjuga com o estatuto do individualismo moderno, na medida
em que o sujeito aqui em causa não se inscreve numa totalidade social que o
subsuma, como ocorria nas sociedades pré-modernas. Nessas, a morte e mesmo o
suicídio se inscrevem numa gramática coletiva, ganhando assim foros de heroísmo
e grandiosidade, sendo o ato de tais personagens marcados pela coragem e pelos
valores éticos superiores. Não é isso que ainda vemos e podemos constatar em
diversas culturas asiáticas e árabes, onde os homens-bomba e os camicases se
transformam em heróis de suas comunidades, louvados pela coragem e pelos
valores fundamentais que os impulsionaram para a morte.
Foi
na tradição individualista moderna que o suicídio se transformou num ato
maldito. Em decorrência disso, a figura do suicida se transformou na figura do
anti-herói e mesmo do covarde, isto é, daquele que não teve coragem para
suportar os obstáculos que a vida lhe impôs. Por isso mesmo, nessa configuração
antropológica o ato suicida foi transformado num sintoma grave de perturbação
psíquica, associado principalmente à experiência da melancolia, mas podendo
também ser inserido em outras psicoses.
Em
sua leitura do sujeito moderno, Freud procurou pensar a melancolia e o suicídio
a partir da experiência do luto. Vale dizer, em face da perda de um objeto
amado ou de um ideal, o sujeito vive uma experiência de luto, numa espécie de
confrontação ética com a figura do morto, num acerto de contas com suas
memórias face ao objeto perdido. Dessa maneira, a melancolia seria uma
impossibilidade para o sujeito de aceitar a perda do objeto de amor e dele se
separar, de forma a ficar identificado com a figura do morto. Enfim, o ato
suicida poderia ser então um ato fatal do sujeito para arrancar de si o objeto
que se perdeu, ou então continuar a ele ligado para sempre pela morte.
Contudo,
toda essa discussão na atualidade assume novos aspectos cruciais,
considerando-se as condições psíquicas do sujeito na contemporaneidade. Assim,
face à feroz competição generalizada que existe hoje no contexto social do
neoliberalismo, em que a performance se colocou como um imperativo fundamental,
a promoção de si mesmo se impôs como uma marca indiscutível da subjetividade
contemporânea. Superar os adversários se transformou numa moral disseminada,
implicando uma aceleração das formas de viver que são correlatas da aceleração
do tempo que se impõe no fluxo das mercadorias e das informações em escala
global. Nesse contexto, cada indivíduo se transformou numa microempresa para
promoção de si mesmo e da venda de seus produtos, sejam esses materiais ou
imateriais, numa multiplicação assintótica de suas performances.
Não
é por acaso que o consumo de drogas, sejam essas lícitas ou ilícitas, se
transformou numa forma de vida. Com efeito, por esse consumo os indivíduos
procuram promover sua performance para estar à altura da competição frenética
existente no espaço social. Face a esse excesso intensivo, o sujeito fica
turbinado, mas, em contrapartida, nem sempre dispõe de instrumentos simbólicos
para lidar com isso. Os efeitos disso são múltiplos, nas tentativas dos
sujeitos de lidarem com tais excessos. Se esses forem descarregados sobre o
corpo podemos reconhecer a origem das múltiplas doenças psicossomáticas na
atualidade, assim como da síndrome do pânico. Contudo, se forem descarregadas
para o exterior teremos uma chave para a compreensão da multiplicação da violência
e da crueldade na atualidade, assim como para a disseminação das adicções no
contemporâneo, que se realizam com diversos objetos, num eixo que se polariza
entre a comida e as drogas. Além disso, esse excesso intensivo pode se fazer
presente como um corpo estranho para o sujeito, que perde assim suas
referências identificatórias, sendo lançado em situações melancólicas.
Assim,
pode-se depreender facilmente dessa cartografia como a morte nos assalta como
possibilidade, de múltiplas maneiras. Isso porque o excesso como dor não pode
ser transformado e metabolizado como sofrimento, pela fragilidade dos
operadores simbólicos de que o sujeito dispõe. Com isso, o desamparo que é
constitutivo do sujeito, segundo Freud, se transforma em desalento, pois num
espaço social permeado pela competição generalizada o sujeito não pode mais
contar com o outro como amigo e aliado.
Não
é espantoso que as taxas de suicídio se incrementem nesse contexto, marcado
pela incerteza e perplexidade. Além disso, não é inesperado que os jovens
estejam mais expostos a esses processos, pois tendo que construir seus
percursos no espaço de alta competitividade, muitos deles infelizmente
sucumbem.
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