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segunda-feira, 16 de julho de 2012

O Pecado de Hadewijch

"Pode uma forte devoção a Deus chocar até mesmo aos religiosos? Amar a Deus pode ser pecado?" Amanda Aouad

"...a inabilidade em lidar com o desejo transforma, perversamente, todo o nosso modo de encarar o mundo." Marcelo Hessel

... "Não é necessário se afastar do mundo para se aproximar de Deus",", diz a madre do convento.


http://youtu.be/Is0W-y8rbUQ

O Pecado de Hadewijch
Hadewijch
França , 2009 - 120 minutos
DramaDireção:
Bruno Dumont Roteiro:
Bruno Dumont Elenco:
Julie Sokolowski, Yassine Salime, David Dewaele, Karl Sarafidis

*Amanda Aouad

Estranhas são as vias do Amor:
e bem o sabe quem as quer seguir:
muitas vezes ele perturba o coração seguro:
quem ama não encontra constância.
Aquele a quem a Caridade
toca no fundo da alma
conhecerá muita hora de desolação.
Fonte: HADEWIJCH DE ANTUÉRPIA (séc. XIII) - POEMAS ESPIRITUAIS.Tradução de João Barrento

Pode uma forte devoção a Deus chocar até mesmo aos religiosos? Amar a Deus pode ser pecado? No século 13 uma cristã ousou declarar seu amor platônico ao Criador, um sentimento quase carnal que necessitava sentir sua presença ao seu lado. Hadewijch de Antuérpia expôs seu amor em líricas místicas de amor. E segundo ela, “Todos nós desejamos ser deuses com Deus, mas Ele sabe que poucos desejam ser homens com Ele em sua humanidade, carregar a cruz com Ele, ser pregado nela com Ele e pagar o débito da humanidade”

Bruno Dumont pegou a história dessa cristã holandesa e, de certa forma, transportou para França atual na figura da jovem Celine. Em um roteiro não linear e pouco claro, ele nos mostra uma garota rica que se interna em um convento, mas escandaliza até mesmo a madre superiora com seu excesso de fé. É enviada para o mundo, mas não consegue viver, porque o amor a Deus a sufoca. Conhece dois irmãos muçulmanos Nassir e Yassine, conhecendo outra forma de servir a Deus, tão fanática quanto o seu íntimo, nem por isso, benéfica. Ou seria? Mas, o interessante é que o roteiro não deixa claro o que vem antes ou depois, pode dar margens a interpretações. Afinal, há uma culpa em Celine que não é explicada, há uma necessidade de se limpar, purgar pecados que nem compreendemos quais. No início do filme ela está jejuando, por exemplo. E há também a figura do operário da igreja que é preso. Por quê? E quando?

Independente dos questionamentos, Bruno Dumont nos dá um filme quase naturalista. Temos poucas inserções de música extra-diegética, por exemplo, praticamente apenas na parte final entram trilhas sonoras. O restante é apenas som da própria cena. O ritmo é bastante lento, com planos longos e momentos de contemplação. Somos apresentados a um show e vemos a música ser tocada na íntegra, boa parte com o enquadramento na banda e apenas os segundos finais com Celine dançando e Yassine tentando beijá-la. Depois temos Celine visitando uma Igreja e assistindo a um ensaio da banda cristã. Aqui também, a música vai na íntegra, com a câmera primeiro um bom tempo parada nos músicos, depois no rosto de Celine maravilhada.

O primeiro ato quase não tem diálogos, as cenas são todas visuais. Tudo é contemplativo e, com isso, reflexivo. Somos obrigados, enquanto espectadores, a pensar naquelas situações, não somos conduzidos pelo ritmo frenético dos diálogos ou cortes rápidos. Ficamos ali, parados, junto à protagonista e nosso pensamento voa em busca de significados. Observamos com mais detalhes os cenários, os figurinos, as expressões de cada ator. Tudo pode ser uma pista para compreender aquela história que não se preocupa em nos explicar nada. Assim como a vida. Ela simplesmente acontece e ficamos refletindo sobre cada acontecimento.

O filme só apela para o explícito na cena em que Celine vê o convento de longe, já ao lado de Nassir. Seu rosto de ilumina com uma luz artificial intensa e quando Nassir diz que eles têm que ir embora, a luz se apaga com a mesma rapidez com que a expressão da atriz muda. Não precisava disso. A gente já tinha entendido o recado. O foco, claro, é a fé. A fé de Celine em seu amor platônico. A fé de Nassir e sua explicação nas armas. A fé de Yassine que acha natural crer e amar a Deus, mas sem desespero ou fanatismo. A fé de cada ser mais ou menos religioso que passa por aquela história. Em dado momento, Celine reclama a ausência do Cristo ao seu lado. E Nassir diz que "Cristo não está ausente, está invisível. Se tem fé, ele está aqui." Essa é a síntese de tudo, invisível não é sinônimo de ausente. É uma cena bonita, Bruno Dummont nos mostra esse muçulmano com idéias tão radicais, mas com uma lógica simples que parece verdadeira a qualquer ouvido. Basta ter fé, para Deus estar a seu lado. E assim, cada homem vive com a sua própria verdade. Nem certo, nem errado.

O Pecado de Hadewijch é um filme bem feito dentro do seu propósito. Pode ser cansativo para os olhos acostumados a obras com ritmo mais acelerado onde a ação dita as regras. E quando falo ação não me restrinjo a correria dos filmes de gênero, mas ao ato de atuar, de acontecimentos. Esse é um filme de pausas. Quase um retrato de um cotidiano bem peculiar. Nos faz pensar. E isso, em um mundo em que as respostas chegam cada vez mais mastigadas, já é bem interessante.

*Mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea pela UFBA na linha de pesquisa em Análise de Teleficção, é formada em Publicidade e Propaganda, roteirista e especialista em Cinema pela UCSal. Fez ainda quatro cursos de crítica cinematográfica ministrados por Pablo Villaça, Francis Vogner, Cláudio Marques e João Carlos Sampaio. Membro da Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos.
Fonte: Cine Pipoca Cult

Crítica: O Pecado de Hadewijch

* Marcelo Hessel

Bruno Dumont faz o seu filme mais acessível, mas as perturbações continuam
Saber que desejos latentes são uma constante nos filmes de Bruno Dumont tira um pouco do mistério do flashback final de O Pecado de Hadewijch (Hadewijch), mas não compromete a sessão desta que é uma acessível porta de entrada para o cinema do premiado diretor francês.

O filme abre com uma reforma dentro de um convento. Desce de guindaste uma armação para empilhar caixas que tem a forma de uma cruz de ponta-cabeça. Uma noção "invertida" do que é o cristianismo fará, minutos depois, a jovem Celine (Julie Sokolowski) ser expulsa do convento.

Na sua justificativa, uma freira diz que a noviça rebelde é uma "caricatura de religiosa": afeita a penitências, Celine jejua o tempo todo, expõe-se ao frio do campo aberto etc. A freira decide que o melhor para a menina, no momento, é voltar à sociedade. "Não é necessário se afastar do mundo para se aproximar de Deus", diz a madre do convento.

Em Paris, desenrola-se então uma trama de causalidades bastante claras, para os padrões de Dumont. Celine, filha de um ministro francês, moradora de uma mansão na ilha Saint-Louis, no coração da cidade, conhece num café um adolescente desocupado da periferia, islâmico, de ascendência árabe. A cena em que Celine o convida para almoçar com os pais só didatiza o choque social.

Dá para entender daí que Celine escolhera a religião para renegar uma herança social que a constrange. Mas o fato é que a menina, seja em Paris ou nos conjuntos habitacionais dos banlieues que ela passa a frequentar, continua sofrendo das mesmas mazelas existenciais que a vitimavam no convento. A fé como consolação não serve para Celine. Bem ao modo Dumont, emoções não ditas comem personagens por dentro, e com Celine isso se traduz em martírio.

O Pecado de Hadewijch lida com temas complexos (o diretor deixa o interior da França e discute de frente o fosso que divide a capital) e controversos (falar de islamismo por si só hoje exige disposição), mas, assim como os longas anteriores do cineasta, que abordam desde crimes hediondos até os excessos da guerra, na essência Dumont está interessado no desejo. Mais especificamente, em como essa inabilidade em lidar com o desejo transforma, perversamente, todo o nosso modo de encarar o mundo.
Fonte: Omelete

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