Fernanda Aranda, iG SP
Foto:
DivulgaçãoLuisa Lina Villa declarou guerra ao HPV
Em tempos de Segunda Guerra Mundial, a matriarca dos Villa não conseguiu estudar. Com o marido e duas filhas no encalço, a mãe deixou a Itália e veio ao Brasil tentar uma nova vida. Após uma longa viagem de navio, olhou para a caçula Luisa Lina Villa e disparou a frase: “a educação será a sua missão”.
A menina obedeceu e fez dos livros e pesquisas
seu objetivo de vida. E quando virou adulta utilizou todo o conhecimento
adquirido nas escolas brasileiras para declarar uma nova guerra, desta vez
pessoal.
O alvo escolhido pela
italiana, naturalizada brasileira e bióloga pela USP foi o HPV. As
pesquisas pioneiras de Luisa, iniciadas na década de 80, mudaram a forma da
comunidade médica tratar as mulheres vítimas de câncer de colo de útero.
Seus dias e noites analisando as moléculas cancerígenas no microscópio
mostraram que o vírus, até então desconhecido, era o causador de uma das
doenças que mais mata no País.
Só em 2012, o câncer de colo do útero deve
fazer 30 mil novas vítimas (projeta o Instituto Nacional do Câncer). Descobrir
que estes tumores tinham relação com o HPV, em mais de 40% dos casos, foi o
primeiro passo para fazer do Papanicolaou um exame de rotina importante para
resguardar a saúde da mulher. Os achados de Luisa também foram o embrião da
vacina contra o HPV, hoje disponível na rede particular do País, mas que
protege pacientes do mundo todo contra este tumor maligno.
Para travar esta batalha, Luísa conta que
precisou ser movida a paixão. “Um amor incondicional à ciência”, define. Namoro
antigo mesmo, que foi despertado aos 11 anos de idade, quando surpreendeu os
pais ao fazer um pedido especial.
Sapos, apêndice e vestibular
Luisa estava sentada à mesa, esperando o
jantar, quando o pai comunicou à família que precisaria fazer uma viagem aos
Estados Unidos. Disse que ficaria alguns dias longe de São Paulo mas que
poderia trazer dois presentes, um para a filha mais velha, amante de poesia, e
outro para a mais nova, que era fissurada pela natureza.
“Minha irmã pediu goma de mascar, cadernos e bonecas, relíquias por aqui”, lembra. Já Luísa disparou: “ papai, quero um microscópio”.
“Minha irmã pediu goma de mascar, cadernos e bonecas, relíquias por aqui”, lembra. Já Luísa disparou: “ papai, quero um microscópio”.
“Desde muito pequena, eu tinha uma curiosidade
latente em saber o que tinha dentro das coisas. Estava na primeira série do
ensino fundamental e a professora havia ensinado o que era célula. Pirei com
aquela informação”, conta.
“Imaginei que com um microscópio eu poderia
saber como tudo funcionava. Quando meu pai trouxe o presente encomendado,
comecei a minha investigação.”
A primeira coisa que Luisa observou foi uma
gota d’água. Depois, um pouquinho do sangue tirado do indicador do pai. Em
seguida, a casca da cebola, o tecido do vestido da mãe, os insetos. Os restos
de comida, os sapos e muitas coisas passaram por aquela lente que aumenta (só)
5 vezes o tamanho das coisas. Os anos também passaram e a paixão pelos bichos,
células e fibras aumentava.
Aos 14 anos, Luísa precisou tirar o apêndice
e, em vão, a mãe tentou convencê-la a deixar o órgão no hospital. “Levei para
casa. Guardei no formol. E vasculhava quase que diariamente aquelas fibras,
aqueles tecidos, aquelas maravilhas”, diz, gargalhando, ao lembrar da
insatisfação da família em ter de conviver com todos aqueles vidros espalhados
pela casa. A irmã dizia que os vidros só continham "tranqueiras”, mas
Luisa garantia que se tratavam de “micro-organismos importantíssimos para a
vida”.
Fazendo jus ao pedido da mãe de ter a educação
como tarefa, Luísa se preparava para escolher a carreira no vestibular.
Biologia já era a alternativa certa, mas ficou ainda mais evidente em uma aula
de ciências naturais.
“A professora explicou na aula sobre o DNA.
Fiquei maravilhada e não queria fazer outra coisa na vida.”
Escolhas e propostas
Luísa Lina já estudava brincando – e não teve muita dificuldade para em 1969 entrar na USP. Naturalizou-se brasileira porque sonhava em dar aula em escola pública e este era uma condição do governo para contratar professores. De forma voluntária – e para ir se acostumando – dava aula de educação sexual para alunos do período noturno em um colégio do Estado.
Com apenas 17 anos, ela já percebia que os
homens e mulheres, de qualquer idade, tinham uma dificuldade enorme em conhecer
o próprio corpo, assimilar o autocuidado e a importância das relações sexuais
seguras. Condutas essas que se mostrariam tão influentes, anos mais tarde,
quando Luisa passou a pesquisar o HPV e constatou sua transmissão via sexo sem
camisinha.
Nos corredores da USP, Luisa dividia essas
experiências com a turma da Biologia, majoritariamente feminina. “Eram tantas
mulheres que o pessoal da Física e da Medicina Veterinária (na época ainda com
mais meninos do que meninas) só passava o intervalo com a gente”, diz. Entre um
lanche e outro, ela começou um namoro com um dos futuros veterinários, relação
que durou 13 anos e virou casamento.
“Meu grande parceiro, até hoje. Depois de
casados, ficamos 6 anos juntos e acabamos nos separando. Com 35 de idade,
quando as minhas amigas pensavam no segundo filho, eu estava me divorciando sem
ter experimentado a maternidade.”
“É claro que eu sei o quanto a paixão pela
ciência influenciou neste meu destino. Já confrontei várias vezes estes
caminhos que trilhei, mas quando olho para trás, honestamente, não vejo como
ter feito diferente”, diz com toda sinceridade Luísa Lina Villa.
Se do útero da pesquisadora não sairiam
herdeiros, com o seu trabalho Luísa conseguiu deixar um importante legado. Suas
pesquisas sobre microorganismo estavam a todo vapor, mas mudaram de foco quando
ela recebeu um convite do Instituto Ludwig, uma das instituições internacionais
mais importantes do mundo, para pesquisar “como era o câncer por dentro”.
“Eu nunca tinha parado para pensar nesta
doença, mas a proposta me aguçou. Escolhi como foco o câncer de colo de útero e
o de pênis e, desde então, estou debruçada neles”, pontua a pesquisadora
Dona Emozilia
O ano era 1982, as investigações começaram e
no final daquela década a relação entre HPV, sigla misteriosa, e câncer de colo
de útero e pênis já estava estabelecida, comprovada e publicada nas revistas
médicas mais importantes. Luisa passou a ser convocada pela indústria
farmacêutica para ajudar na busca por uma vacina preventiva. Na metade dos anos
90, as doses já estavam prontas e a bióloga cientista referenciada nos quatro
quantos do mundo por ter conduzido a maior parte das pesquisas no Brasil.
Nos anos 2000, Luisa e sua equipe começaram a
investigar a associação entre os tumores malignos na língua e pescoço e o mesmo
vírus. Pela primeira vez, a relação entre sexo oral desprotegido e câncer na
boca começou a ser divulgada.
A guerra contra o HPV, todos sabem, não foi
vencida. Luísa ainda espera que a vacina chegue à rede pública brasileira, que
as mulheres usem mais camisinha, que façam o Papanicolaou regularmente e que os
homens não precisem ter o pênis amputado após um diagnóstico de câncer – quatro
em dez causados pelo HPV – em estágio avançado. Mas ela sabe que a sua história
é de sucesso e, a todo momento, diz que nenhuma história se faz sozinha.
Dedica as conquistas à mãe e sua frase “a
educação é sua missão”, a todos os envolvidos nas pesquisas que ela já fez, aos
concorrentes que trouxeram mais dados aos ensaios clínicos e ao professor da
USP Ricardo Brentani (falecido em 2011 e um dos principais nomes da ciência
internacional).
“Foi ele quem me soprou no ouvido, lá nos anos
1980, que a comunidade internacional estava de olho no HPV”, diz Luisa.
A pesquisadora elencou uma lista de nomes e,
com entusiasmo, citou dona Emozilia, faxineira do Ludwig, com quem a bióloga
testava os questionários sobre hábitos de vida antes de aplicá-los na população
participante das pesquisas.
“Ela que me direcionava, dizia que as
perguntas eram difíceis, fáceis, aplicáveis ou não.”
Luisa também coloca como peças fundamentais na
história o pai e seu primeiro microscópio, que ainda está na sua penteadeira,
com algumas partes faltando, mas com capacidade de mostrar como é importante
conhecer as coisas por dentro.
Nova geração
Mariana
Diniz, também bióloga, pesquisa uma vacina para tratar o HPV. Doses
no mercado são preventivas e não terapêuticas
Foto:
Eduardo Cesar/FotoarenaMariana Diniz, 28 anos, pesquisa fórmulas
contra o HPV desde os 20 de idade
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