Blogueiro
negro defende cotas raciais nas universidades até que todos deixem de tratar
pretos como representantes de minoria
Mateus
Prado
Com
a decisão da legalidade, pelo STF, das cotas raciais , as primeiras
inscrições de alunos pela lei de cotas nas universidades públicas federais e a
possibilidade real de cotas nas universidades públicas de São Paulo amplia-se o debate
sobre questões de políticas afirmativas em relação à população afrodescendente.
Boa parte deste debate tem sido feito de forma rasa e com boa dose de
preconceito e/ou constrangimento em reconhecer as cotas como um direito que trata
desiguais de forma desigual.
Convidei
para participar dessa coluna através do texto abaixo, e assim colaborar no
debate, o estudante André Rossi Pola Barbosa. André, blogueiro, é negro, filho
de mãe solteira, militante do movimento negro e do movimento feminista. Já cursou
farmácia em uma universidade particular e depois engenharia mecânica naval na
Fundação Universidade do Rio Grande (FURG). Não era o caminho que queria, e
hoje se dedica a estudar para conquistar uma vaga em medicina em uma
universidade pública, se possível com a nota do Enem. André, por ter estudado o
ensino médio em escola particular, não tem direito a concorrer pelas cotas da
lei nacional.
Sobre
igualdade, racismo e ações afirmativas - pois o racismo não está nos olhos de
quem vê
Vivemos
na era do politicamente correto. Isso é uma coisa boa, pois desse modo muitas
pessoas percebem o quanto as expressões do dia-a-dia estão carregadas de
preconceitos e menosprezo com as minorias. Assim, muitos indivíduos que se
achavam deslocados do mundo repararam que não estão sozinhos e, disso, inúmeros
movimentos se organizaram melhor (ou ganharam mais força) como o das
feministas, o dos negros e o dos gays. A fim de melhorar e reivindicar certos
direitos que, para eles, não eram garantidos ou não eram respeitados, esses
grupos se organizaram e suas reivindicações encontraram grande resistência por
parte de reacionários (pessoas que não aceitam mudanças na sociedade e preferem
a ordem atual).
Uma
dessas reivindicações foi a política de ações afirmativas, para que haja uma
maior participação do negro na sociedade. Para isso, recentemente, o governo de
São Paulo propôs às universidades estaduais que reservassem 50% das vagas para
pretos (nomenclatura oficial para negros e pardos do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, IBGE) e alunos de escola pública. Por isso, a classe
média hoje vocifera palavras de igualdade, dizendo que as cotas vão apenas
fomentar o racismo (que ela pensa não existir mais). No entanto, isso é uma
falácia e tais ações se fazem necessárias para que justamente se diminua o
racismo no Brasil.
A
maioria das pessoas contrárias às cotas se indigna por elas tirarem a igualdade
entre os cidadãos, porque todos são "iguais perante a lei". Todavia,
não sabem da existência de dois tipos de igualdade: a formal e a material. O
primeiro tipo de igualdade é a defendida pelos reacionários, de que todos são
iguais, mas por meio desse tipo de igualdade os juristas verificaram que as
diferenças sociais não deixavam de existir. Por causa disso, foi definida então
a segunda igualdade, a material. Nesta, para tornar a sociedade mais
igualitária, os mais desiguais serão tratados desigualmente ao pé de suas
desigualdades - para que estes possam se tornar mais iguais ante os demais. Por
isso foi importante a criminalização da homofobia, foi importante a instituição
da lei "Maria da Penha" para combater a violência doméstica e assim
também são importantes as cotas raciais e sociais nas universidades públicas.
A
sociedade brasileira é a segunda maior sociedade de pretos do mundo, perdendo
apenas para a Nigéria. Mas onde eles estão? Pois não constituem a maioria dos
engenheiros, dos padres, dos médicos, dos professores, dos fisioterapeutas ou
dos advogados. Porém, constituem a maioria em empregos como: auxiliares de
obras, garçons, garis, carteiros, jardineiros, etc. Essas profissões não perdem
a sua importância para a sociedade como aquelas outras, mas, não obstante, a
possibilidade de ascensão social a partir delas é quase nula. O que explica o
porquê de negros e pardos ficarem com essas profissões é a nossa história.
Quando
se trata de escravidão, no imaginário das pessoas vem à tona a fazenda modelo
de José de Alencar. Aquela fazenda cujo retrato ocorre nas novelas de época da
Globo, onde o negro fica trabalhando normalmente sem reclamar e o branco vive o
papel do protagonista. Contudo, a vida real dessas pessoas não foi assim. Além
do trabalho árduo, o negro não passava de um objeto, não era considerado gente,
nem portador de alma segundo a igreja na época. Sofria os mais variados tipos
de castigos e de insultos, era considerado desleixado e vagabundo. Seu trabalho
não era considerado de qualidade, daí vieram expressões como "serviço de
preto" e "pretisse". Em 1888, em 13 de Maio, foi assinada a
"Lei Áurea", que colocaria um fim à escravidão, com o crescimento da
indústria no sudeste e o aparecimento do trabalho assalariado. A partir desses
eventos, o negro passaria a ter um modo de vida, então, digno.
No
entanto, isso não ocorreu. Por quê? Na época, havia inúmeras teorias racistas e
a principal e mais arraigada na mentalidade da população era: negro é um
estágio anterior dos brancos, tanto que havia "pesquisadores"
empenhados em provar que o negro era menos evoluído. Ninguém conseguiu provar
ou demonstrar tais teorias, porém elas contribuíram para o preconceito já
existente. Em suma: negro não era gente. Além disso, a "Lei Áurea"
apenas retirou o negro da condição de "objeto" e o pôs na sociedade
totalmente "cru", sem estudo e nem preparo, portanto não havia
condições de eles competirem com os imigrantes europeus e depois japoneses que
desembarcavam aos milhares nos portos brasileiros. Os novos imigrantes eram
atraídos pela possibilidade de emprego e de enriquecimento. Já para o governo
da época, essa foi uma tentativa de "embranquecer" a população, pois
uma das teorias então existentes era de que a miscigenação de "raças"
(hoje temos clareza que não há outra raça além da humana) era prejudicial para
um país e para os seres humanos. Assim o negro foi liberto, mas não garantiram
meios para que ele pudesse sobreviver, e tudo isso ocorreu por causa da
mentalidade até então existente.
O
principal ainda era a ideia de que "preto é vagabundo", "preto
não trabalha direito", "preto que não caga na entrada caga na
saída" e outras inúmeras expressões e piadas que refletiam a mentalidade
desse momento em que o negro entrava na sociedade. Por causa desse pensamento,
sempre sobraram aos negros os piores serviços, pois o empregador não queria
correr o risco de ter um funcionário "preguiçoso". Já o branco era
muito mais trabalhador, tanto que, segundo o professor da Unesp, Dagoberto José
Fonseca, surgiu a expressão "amanhã é dia de branco".
Largado
às margens da sociedade, o ex-escravo e agora favelado fica a esmo nas grandes
cidades, com dificuldade de encontrar emprego por não ter capacidade de
competir com os imigrantes. Por estar desempregado e sempre criando o samba,
dando risada, seu quadro foi agravado. Foram ratificados os estigmas de
"vagabundo", "preguiçoso", "vadio" e, para
piorar, eram alvos de piadas que mostravam a superioridade do branco, como:
"Como preto sobe na vida? Quando explode o barraco" ou "Por que
preto americano é melhor? Porque está nos Estados Unidos". Essas piadas
foram transferidas atualmente para o pobre, para o gay. Por isso, atualmente, o
politicamente correto se faz necessário para demonstrar que expressões tidas
como "inofensivas" são racistas e pregam o preconceito devido a uma
carga histórica já existente nelas. Portanto o preconceito, embora disfarçado,
ainda persiste na sociedade brasileira por meio de ditados populares e não como
dizem que ele está "nos olhos de quem vê", pois em cada expressão há
uma origem de extrema discriminação. Atualmente isso ainda é propagado por meio
de piadas, em especial.
O
riso é, de certo modo, acusador das diferenças sociais. Há pessoas que dão
risada das piadas anteriormente citadas, esse riso é o de quem concorda que
essa é a atual situação do negro. O efeito humorístico nesse caso é criado pela
hipérbole da situação deles nas cidades e, se essa situação não for mais
evidente, não haverá mais o riso. Quando não houver mais humor, é porque a
mensagem passada é um absurdo para a maioria da população e, então agora, o
preto faz parte da maioria da sociedade. Isso evidencia como as cotas raciais
são necessárias.
Mas
e os brancos pobres? Embora a desigualdade social seja grande no País, o branco
pobre tem maior facilidade em arrumar um emprego do que o preto pobre, por
causa dos pensamentos anteriormente citados que dominam o subconsciente de
pessoas ainda racistas. Tanto que, no início da década de 1990, era comum nos
anúncios de emprego a exigência de "boa aparência". Por meio de uma
investigação policial, verificou-se que a "boa aparência" era ser
branco. Isso evidencia como o racismo ainda existe fortemente no Brasil. Quando
houver mais negros e pardos ocupando cargos importantes, a ideia de que ele é
"vagabundo", "preguiçoso" e "folgado" deixará de
existir.
As
cotas não constituem uma forma para acabar com a suposta "igualdade"
existente, elas criarão possibilidades para que, no futuro, a sociedade seja
mais igualitária. Ela o será quando o negro for colocado em maior evidência,
quando for retirado dos empregos considerados menos importantes, quando for
afastado dele o estigma de bandido e favelado, quando todos deixarem de rir de
piadas racistas e outras insinuações que denigrem a sua imagem. Mas tudo isso
leva tempo. Quanto tempo? O tempo até que todos deixarem de falar deles como
minorias e passarmos a nos preocupar com a situação do ser humano e não mais da
situação do negro.
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