*Alberto Villas
“Não pise no frio quando sair do banho porque senão vai ficar com a boca torta que nem seu Moacir!” Essa era a palavra de ordem da minha mãe quando éramos pequenos. Seu Moacir era um negro de uns dois metros de altura e muito magro. Usava sempre óculos escuros, tinha olhos vesgos e a boca torta. Trabalhava no Serviço de Meteorologia e era uma pessoa formidável, de um humor invejável. Fazia piada com tudo, inclusive com a sua cor, sua altura, seus olhos vesgos e sua boca torta.
Foto: Galeria de Relicario/Flickr
Diziam que Moacir tinha ficado assim porque um dia saiu do banho quente e pisou fora do tapete, no chão frio. Minha mãe acreditava nessa história e nos alertava todos os dias. Passamos a infância inteira com muito medo de pisar no chão frio ao sair do banho quente.
Minha mãe era muito católica, mas jurava que não era nem um pouco supersticiosa. Supersticiosa ela poderia não ser, mas tinha lá suas regras e manias para criar os filhos e evitar catástrofes.
Quando o céu fechava anunciando chuva e os raios iluminavam Belo Horizonte, a primeira providência era esconder todas as facas, tesouras e objetos pontiagudos da casa. “Não mexam com faca!”, ordenava ela. E nós obedecíamos, escondendo dentro das gavetas não somente as facas, mas tesouras, estiletes, canivetes e cortadores de papel.
Quando o primeiro sopro do vento de inverno invadia a nossa casa, lá vinha ela: “Fecha a janela, que vento encanado dá pneumonia!” Hoje me pergunto onde foi parar o vento encanado. Há muitos e muitos anos não ouço ninguém falar em vento encanado.
Na minha casa era proibido dar susto nos outros. Nem mesmo aquele sustinho besta de esconder atrás da porta. Minha mãe era definitiva nas suas afirmações: “Quem leva susto fica paralítico!”.
Não foram poucas as regras estabelecidas por dona Lali e obedecidas durante décadas. Sempre tivemos um cachorro em casa. Primeiro foi Joli, depois Tupi, Pink e finalmente a Fly. Mas nunca tivemos um gato. Sabe por quê? “Gato dá asma!”, dizia ela. Jamais deixou um bichano entrar na nossa casa da Rua Rio Verde.
O tal do “depois do almoço” era um capítulo à parte na história da nossa família. Depois do almoço não podíamos dormir de barriga pra cima, não podíamos ir ao barbeiro cortar o cabelo, não podíamos nadar e nem mesmo andar de patinete. Tudo fazia mal depois do almoço.
Éramos proibidos de brincar de cruzar os olhos. “Não fica vesgo porque se vem um vento os olhos não voltam mais ao normal!” Éramos também proibidos de ler com o carro andando. “Você vai vomitar já, já!”, advertia ela. Depois de muita insistência, ela permitiu que criássemos pombos. Mas sempre dizia: “Limpa o pombal, porque, além da asma, pombo dá piolho!”
Não eram poucas as manias da minha mãe. Desligava todos os aparelhos domésticos da casa quando chovia, nunca nos cobria com o cobertor Parahyba com a etiqueta virada pra cima e sempre nos mandava rezar para a “alma de Aparecida” quando se perdia alguma coisa.
Mas a obsessão mesmo era evitar que misturássemos manga com leite. Isso não era medida provisória, era ato institucional. Minha mãe tinha uma certeza na vida: “Manga com leite é veneno, mata na hora!” Tínhamos tanto medo que não gostávamos sequer de ver um litro de leite Itambé perto de uma manga Ubá. Não era brincadeira, minha mãe argumentava com exemplos concretos. “O filho de uma amiga minha de Ponte Nova bateu leite com manga no liquidificador e morreu meia hora depois.” Durante muitos anos aquela combinação era para nós o equivalente a uma mistura de formicida com arsênico. Isso até ontem.
Na minha casa temos a mania de tomar o café da manhã lendo as etiquetas dos produtos que estão em cima da mesa. “Sabia que Ovomaltine leva ovo?” “Que Aveia Quaker tem fibras e proteínas?” “Sabia que a manteiga Aviação precisa ficar numa temperatura de 10 graus?” Ontem, deparamos com uma receita na caixinha de leite que me deixou perplexo: “Loucura de Manga!!!” Como assim? Manga com leite? Mas isso não é uma receita, é um conselho de Jim Jones!
Mas é verdade. Está lá! Ingredientes: 2 mangas maduras tipo Haden, 300ml de leite, 4 colheres (sopa) de mel, 6 cubos de gelo, 1 envelope de gelatina sem sabor, canela em pó. Modo de preparo: hidrate a gelatina em 50ml de leite. Dissolva em banho-maria ou no microondas por 30 segundos. Bata todos os ingredientes no liquidificador. Polvilhe canela e sirva gelado.
Vou experimentar. Se por acaso semana que vem eu não estiver aqui neste espaço da Carta Capital é porque minha mãe tinha razão.
*Mineiro de Belo Horizonte, é jornalista e autor dos livros “O mundo acabou!”, “Afinal, o que viemos fazer em Paris?”, “Admirável mundo velho!” e “Onde foi parar nosso tempo?”, todos pela Editora Globo, além de "Carmo" (Ed. Contexto). Acaba de lançar também pela Editora Globo o “Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Morta”
Fonte: CartaCapital
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