O ser humano
sente prazer em ver o outro (o devedor, o acusado ou condenado) sofrer ou ser
humilhado, sobretudo, quando possível, publicamente (e midiaticamente)
Luiz Flávio Gomes
Cachoeira, na CPMI, optou por exercer o direito constitucional
ao silêncio e ouviu da senadora Kátia Abreu (PSD-TO) a seguinte exortação:
"Estamos perguntando para uma múmia. Não vou ficar aqui dando ouro para
bandido. Nós estamos aqui para trabalhar". O senador Demóstenes optou pelo
constitucional direito ao silêncio e ouviu, na CPMI, transmitida ao vivo,
cobras e lagartos do deputado Sílvio Costa (PTB-PE): "O senhor, que faz
parte da quadrilha do Cachoeira, não vai para o céu porque o céu não é lugar de
mentirosos". O senador Pedro Taques (PDT-MT) ponderou que ninguém pode ser
tratado com indignidade nem humilhado e foi aí que o deputado, aos berros,
falou em hipocrisia, demagogia, f.d.p., merda etc.
Um vídeo caiu nas redes sociais, em maio de 2012, mostrando as
humilhações midiáticas do policialesco Brasil Urgente Bahia, conhecido como
"O sistema é bruto" (Band BA). Isso acabou gerando um grande ruído
(uma sacudida) na (normalmente) anestesiada sensibilidade social. Uma repórter
(loira), enquanto entrevistava um jovem (negro) de 18 anos acusado de roubo e
de tentativa de estupro, perguntou-lhe se ele já tinha feito "exame de
próstata" (e se tinha gostado disso!) para constatar se houve ou não
violência sexual contra a suposta vítima. A repórter ridicularizou e debochou
do seu entrevistado, abordando-o de forma "preconceituosa",
"racista" e "elitista".
O que existe em comum em todo esse grotesco sensacionalismo
midiático violador dos direitos humanos, chamado por alguns de
"datenização do direito penal": o deboche, o preconceito, o
desrespeito, o propósito de humilhar, ofender, desprezar ou menosprezar as
pessoas acusadas de um crime. Em poucas palavras: essa é a pena de humilhação
midiática, que não só não está prevista em nenhuma norma legal ou
constitucional, como também contraria as regras básicas da Ética, entendida
como "a arte de viver bem humanamente" (Savater). A pena de
humilhação midiática, por mais prazerosa que seja, por mais apoio popular que
tenha, denigre a Qualidade Ética da nossa República.
Qual é a origem histórica desse abominável comportamento
sub-humano? Vem, segundo Nietzsche (A genealogia da moral), da pré-história,
antes do nascimento da ideia de Estado. O contribuinte, o jornalista, o
parlamentar, o policial, o juiz, o promotor etc., quando praticam ou exigem o
escárnio do suspeito ou acusado, cumprem o mesmo papel do antigo credor frente
ao seu devedor, que não honra o compromisso assumido. Quem é acusado de quebrar
a ordem jurídica (o inimigo) teria que assumir a posição desse provecto
devedor, um inferior, que deve ser tratado de forma pejorativa, humilhante,
vexatória, pelo superior, que experimenta uma sensação de poder ao infligir dor
e humilhação nesse "devedor".
Como se vê, é da relação de uma dívida não honrada que nasce a
punição degradante do devedor. Por meio da punição, "[...] o credor
participa de um direito dos senhores; experimenta enfim ele mesmo a sensação
exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como inferior". Com esse
poder de executar uma pena ao devedor, "o credor tem, a certo modo, ao
menos o poder de ver seu devedor desprezado e maltratado."*
Quando uma promessa é descumprida ou um acordo desonrado (ou
seja: quando alguém é acusado de um crime), a dor daquele que deve (do acusado)
e que causara um dano serviria como equivalente pelo desprazer causado pela
promessa não cumprida (pela violação da norma). A humilhação do acusado gera
prazer, um prazer equivalente à satisfação do crédito. O castigo (sobretudo
quando humilhante) funciona "como uma espécie de reparação por um dano
sofrido e a sensação de prazer ao causar sofrimentos àquele que lhe deve (ao
acusado) é o equivalente por tal dívida."
Há uma equivalência (subjetiva, psicológica) entre a dor
infligida contra o infrator e o dano causado (ou supostamente causado) por ele.
Existe uma espécie de compensação entre a humilhação do acusado e a ofensa por
ele praticada (ou supostamente praticada). O ser humano sente prazer em ver
outro ser humano (o devedor, o acusado ou condenado etc.) sofrer ou ser
humilhado, sobretudo, quando possível, publicamente (e midiaticamente). A raiva
(bem como a vingança) é descarregada sobre o acusado como uma forma de punição
extralegal pelo que ele fez. É dessa forma que se explica a pena de humilhação
midiática, que vem da pré-história, retratando momentos pré-modernos de
comportamentos sub-humanos.
Luiz Flávio Gomes é professor, jurista e membro da Comissão de
Reforma do Novo Código Penal
Fonte: site webartigos
Extraído do Brasil 247
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