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sábado, 16 de junho de 2012

Nietzsche e a pena de humilhação midiática


O ser humano sente prazer em ver o outro (o devedor, o acusado ou condenado) sofrer ou ser humilhado, sobretudo, quando possível, publicamente (e midiaticamente)

Luiz Flávio Gomes


Cachoeira, na CPMI, optou por exercer o direito constitucional ao silêncio e ouviu da senadora Kátia Abreu (PSD-TO) a seguinte exortação: "Estamos perguntando para uma múmia. Não vou ficar aqui dando ouro para bandido. Nós estamos aqui para trabalhar". O senador Demóstenes optou pelo constitucional direito ao silêncio e ouviu, na CPMI, transmitida ao vivo, cobras e lagartos do deputado Sílvio Costa (PTB-PE): "O senhor, que faz parte da quadrilha do Cachoeira, não vai para o céu porque o céu não é lugar de mentirosos". O senador Pedro Taques (PDT-MT) ponderou que ninguém pode ser tratado com indignidade nem humilhado e foi aí que o deputado, aos berros, falou em hipocrisia, demagogia, f.d.p., merda etc.

Um vídeo caiu nas redes sociais, em maio de 2012, mostrando as humilhações midiáticas do policialesco Brasil Urgente Bahia, conhecido como "O sistema é bruto" (Band BA). Isso acabou gerando um grande ruído (uma sacudida) na (normalmente) anestesiada sensibilidade social. Uma repórter (loira), enquanto entrevistava um jovem (negro) de 18 anos acusado de roubo e de tentativa de estupro, perguntou-lhe se ele já tinha feito "exame de próstata" (e se tinha gostado disso!) para constatar se houve ou não violência sexual contra a suposta vítima. A repórter ridicularizou e debochou do seu entrevistado, abordando-o de forma "preconceituosa", "racista" e "elitista".

O que existe em comum em todo esse grotesco sensacionalismo midiático violador dos direitos humanos, chamado por alguns de "datenização do direito penal": o deboche, o preconceito, o desrespeito, o propósito de humilhar, ofender, desprezar ou menosprezar as pessoas acusadas de um crime. Em poucas palavras: essa é a pena de humilhação midiática, que não só não está prevista em nenhuma norma legal ou constitucional, como também contraria as regras básicas da Ética, entendida como "a arte de viver bem humanamente" (Savater). A pena de humilhação midiática, por mais prazerosa que seja, por mais apoio popular que tenha, denigre a Qualidade Ética da nossa República.


Qual é a origem histórica desse abominável comportamento sub-humano? Vem, segundo Nietzsche (A genealogia da moral), da pré-história, antes do nascimento da ideia de Estado. O contribuinte, o jornalista, o parlamentar, o policial, o juiz, o promotor etc., quando praticam ou exigem o escárnio do suspeito ou acusado, cumprem o mesmo papel do antigo credor frente ao seu devedor, que não honra o compromisso assumido. Quem é acusado de quebrar a ordem jurídica (o inimigo) teria que assumir a posição desse provecto devedor, um inferior, que deve ser tratado de forma pejorativa, humilhante, vexatória, pelo superior, que experimenta uma sensação de poder ao infligir dor e humilhação nesse "devedor".

Como se vê, é da relação de uma dívida não honrada que nasce a punição degradante do devedor. Por meio da punição, "[...] o credor participa de um direito dos senhores; experimenta enfim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como inferior". Com esse poder de executar uma pena ao devedor, "o credor tem, a certo modo, ao menos o poder de ver seu devedor desprezado e maltratado."*

Quando uma promessa é descumprida ou um acordo desonrado (ou seja: quando alguém é acusado de um crime), a dor daquele que deve (do acusado) e que causara um dano serviria como equivalente pelo desprazer causado pela promessa não cumprida (pela violação da norma). A humilhação do acusado gera prazer, um prazer equivalente à satisfação do crédito. O castigo (sobretudo quando humilhante) funciona "como uma espécie de reparação por um dano sofrido e a sensação de prazer ao causar sofrimentos àquele que lhe deve (ao acusado) é o equivalente por tal dívida."

Há uma equivalência (subjetiva, psicológica) entre a dor infligida contra o infrator e o dano causado (ou supostamente causado) por ele. Existe uma espécie de compensação entre a humilhação do acusado e a ofensa por ele praticada (ou supostamente praticada). O ser humano sente prazer em ver outro ser humano (o devedor, o acusado ou condenado etc.) sofrer ou ser humilhado, sobretudo, quando possível, publicamente (e midiaticamente). A raiva (bem como a vingança) é descarregada sobre o acusado como uma forma de punição extralegal pelo que ele fez. É dessa forma que se explica a pena de humilhação midiática, que vem da pré-história, retratando momentos pré-modernos de comportamentos sub-humanos.

Luiz Flávio Gomes é professor, jurista e membro da Comissão de Reforma do Novo Código Penal


Extraído do Brasil 247

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